Gente simples, fazendo coisas pequenas
em lugares sem importância,
consegue mudanças extraordinárias.
Dom Moacyr Grechi, bispo de Porto Velho,
XII Intereclesial em Porto Velho, Rondônia, 2009
De 1977 a 2001, em sete cidades da Prelazia de São Félix do Araguaia, no norte do Mato Grosso, oito igrejas e um memorial tiveram suas paredes pintadas com temas que falam do Reino de Deus e da luta do povo pelo direito à vida, à terra e à justiça. O mentor da ideia de preservar a história por meio de enormes murais foi do primeiro bispo da Prelazia, Dom Pedro Casaldáliga. Esse espanhol da Catalunha chegou ao povoado de São Félix em 1968, em plena ditadura militar. Dom Pedro enfrentou militares e grandes grileiros com instrumentos inspirados no Concílio Vaticano II e na Teologia da Libertação. A beleza e a força dos vitrais das centenárias catedrais da Europa, que fazem a memória da história da Salvação, também tocaram a sua alma de poeta.
Maximino Cerezo Barredo, sacerdote e artista plástico, reconhecido nos cinco continentes com obras espalhadas com obras espalhadas pelos cinco continentes, em sete estados brasileiros e em quase todos os países da América Latina, aceitou o desafio proposto por Dom Pedro. O bispo e o padre são da mesma congregação dos claretianos e já haviam trabalhado juntos na Espanha, na revista Iris. Maximino esteve na Prelazia dezenas de vezes ao longo desses 24 anos. Em pequenas e modestas igrejas das jovens cidades com poucos habitantes, majoritariamente pobres, Cerezo Barredo materializou nos murais o rosto dos povos e das culturas, suas lutas e suas vidas movidas pela fé no Deus dos pobres. Ele produziu também mosaicos na parte externa das igrejas.
Em 2004, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tombou o conjunto dos 11 murais com o mesmo objetivo de preservar não só as obras de arte, mas também a história pouco conhecida desse povo que desbravou Brasil central. O encaminhamento para o tombamento dos murais foi uma das primeiras iniciativas do bispo Dom Leonardo Ulrich, que substituiu Dom Pedro neste mesmo ano de 2004: “O tombamento garante a preservação das obras e proporciona ganhos para região e consequente aumento do fluxo de pesquisadores e turistas”.
“O povo sem memória não merece viver”, afirma Casaldáliga, hoje com 80 anos, em São Félix do Araguaia, onde continua morando na condição de bispo emérito da Prelazia. Ele já decidiu que será enterrado no abandonado cemitério Karajá, à beira do Araguaia, “pois ali estão muitos índios desconhecidos que perderam a vida na defesa da Terra”.
Nós somos aquilo que amamos,
o que fazemos e o que sonhamos...
Somos teimosamente sonhadores, continua o bispo poeta.
A Unesco reconhece que o patrimônio cultural imaterial, transmitido de geração em geração e constantemente recriado pela comunidade, dá sentido de identidade. O Decreto 3551, de 2000, instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como patrimônio cultural brasileiro.
Há dois mil anos, Jesus de Nazaré – quando provocado por fariseus exigindo que ele mandasse o povo se calar – replicou: “Se eles se calarem, as pedras gritarão!” (Lucas 19,40). No seu seguimento, os apóstolos Pedro e João responderam às autoridades dos judeus que os ordenavam não mais falar sobre o Mestre Jesus e suas obras: “Não podemos nos calar sobre tudo o que vimos e ouvimos” (Atos 4,20).
Na América Latina, manifestações culturais visando a preservação da memória da luta do povo durante os anos de ditadura são uma constante. A cineasta Carmem Castilho Echeverria, do Chile, que assistiu horrorizada queima de livros pela polícia de seu país, foi premiada pelo seu filme El tesoro de América - El oro de Pascua Luma. Convicta de que “os olhos sem memória não veem nada”, ela relembra a luta que seu povo iniciou pela ocupação da terra, em 1971, espontaneamente, todos movidos pela fome: “Mas, eu não tive direito à existência até que me organizei”, explica. Na Prelazia, ouvi depoimentos em diferentes cidades durante esta peregrinação de pessoas que viveram processos muito semelhantes. Algumas, principalmente as mulheres, transformaram suas experiências de vida em monografias para conclusão de cursos universitários.
Pedro Casaldáliga e seus colaboradores foram motores na organização do povo. Ele continua insistindo na importância da preservação da memória. Na última peregrinação ao Memorial da América Latina, em Ribeirão Cascalheira, em julho de 2011, com voz débil, reafirmou suas certezas: “Não se esqueçam dos nossos pobres... O desânimo também é pecado, não podemos desanimar... Lembrar é combater... Esquecer é permitir”.
Nos Estados Unidos, Martin Luther King afirmou: “O que me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem caráter, nem dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons”.
Quando me aposentei como jornalista e professora da Universidade de Brasília, fui morar na cidade de Goiás, movida pelo encantamento que me levou a conversão à radicalidade do Evangelho de Jesus e ao jeito de ser Igreja proposto pelo Mosteiro da Anunciação. Era o último ano do século XX, e no ano 2000 celebrava-se o Jubileu. Esse costume, inspirado nos textos bíblicos do Primeiro Testamento, repete-se a cada 50 anos. A Igreja Católica animava seus fiéis a peregrinar às grandes catedrais e aos lugares sagrados. Ao instalar-me na periferia da pequena cidade de Goiás, eu havia feito minha opção fundamental pelos pobres. Mas continuava jornalista. Por isso, decidi peregrinar no meio dos pobres e sofredores, onde eu acredito encontrar Jesus, o Nazareno, que nasceu de uma mulher pobre e morreu crucificado. Em 1999, dei início ao projeto de realizar cinco peregrinações pelos cinco continentes para escrever cinco livros, ao longo de 500 dias. Eu apenas dava os primeiros passos para entender o Reino de Deus pelos olhos da Teologia da Libertação.
O Concílio Vaticano II deixou muitas heranças que continuam a iluminar o caminho de muitos cristãos e a fortalecer teólogos, sacerdotes, leigos e leigas que vivem a sua Fé segundo a Teologia da Libertação. Para o teólogo e sacerdote Pablo Bonavia, duas são as principais heranças: "Fazer teologia é ler os sinais dos tempos, através da ação do Espírito. O povo de Deus é sujeito do fazer teológico e eclesial. Todos e todas, leigos e leigas, temos o mesmo carisma profético. A ‘hermenêutica dos pobres’ nos ensina que há coisas no mundo que só se veem a partir da perspectiva dos excluídos".
No primeiro livro de peregrinações, Sinais de Esperança, conheci os excluídos das três Américas – os sem teto dos Estados Unidos, os meninos de rua da Colômbia, os desempregados do México, que se arriscavam a viver sem documentos atravessando o Rio Grande, entre outros sofredores. Na segunda peregrinação à África e ao Oriente Próximo, convivi com os pobres, os sem paz, os sem pátria, os condenados a morrer de fome ou de AIDs, entre outras doenças. Escrevi Perdão, África, perdão! Em 2006, fui para a Europa peregrinar pelos mosteiros das diferentes igrejas e religiões. Entre monges e monjas que optaram pela autoexclusão do mundo, dedicando-se às orações, meditações e práticas de uma vida simples, longe do consumismo e dos agitos do nosso século, aprendi soluções simples para os problemas que criamos. Escrevi Além do Silêncio.
A presente peregrinação ao coração do Brasil durou 70 dias, no segundo semestre de 2010. Guiada pelos murais de Cerezo Barredo, mergulhei num mundo distante das realidades transmitidas pelos meios de comunicação. Pela força de seus traços e da trama dos personagens bíblicos e populares dos murais, encontrei o povo. O povo, os pioneiros, os índios, os que se organizaram em sindicatos e partidos políticos, os bem mais velhos e também os jovens que enfrentam novos problemas foram minhas fontes de informação.
Como sempre nas peregrinações, procurava entender a realidade iluminada pela espiritualidade dos tempos bíblicos e pela sabedoria acumulada pelos povos. Com profundo respeito por tudo e todos, assim como Abraão que conduziu o seu povo durante 40 anos no deserto. Deus lhe disse (Êxodo 3,5): “Tira teus sapatos dos pés porque a terra que você está pisando é sagrada”. Assim eu pisei na terra sagrada e abençoada da Prelazia de São Félix.
Em cada uma das cidades, encontrei semelhanças, vividas e contadas por diferentes pessoas. E também histórias que transformaram essas vivências semelhantes em realidades únicas que não podem ser esquecidas. Ou seja, os saberes, enraizados no cotidiano das comunidades, as celebrações, as festas, o trabalho em mutirão, as diferentes formas de expressões e os lugares onde se reproduzem essas práticas culturais coletivas – as ruas, praças, mercados, santuários. Com imenso cuidado, segui cada passo ao peregrinar e cada palavra ao redigir este livro.
Pelas mãos de Cerezo
O martírio é um tema forte na Prelazia. São milhares de índios massacrados, caboclos anônimos resistindo pela terra e lideranças organizando o povo para as lutas. O martírio tem sido, também na minha vida, um pensamento recorrente desde a infância. Quando me preparava para a primeira comunhão, encantava-me a ideia de que o batismo de sangue me levaria, como um foguete, para os braços de Jesus. Sem passagem pelo Purgatório, que me horrorizava.
Para partir peregrinando, reparo a mala com pouca roupa e muitos apetrechos: um laptop velho e pesado, câmera fotográfica e gravador digitais novos, celular velho, cadernos de contato e roteiros, documentos. Cuido de deixar a casa do Menino Jesus, onde moro desde que cheguei a Goiás, em 1999, e o Jardim da Transfiguração, de preservação ambiental, em mãos amigas. Vou me despedindo de amigos e das amigas e administrando as saudades. Junto com tudo isso, o sonho da infância e a ideia de uma despedida definitiva. Não temo a morte, nem a desejo. Mas me observo pensando nela com ternura. E o martírio? Para ser sincera, não me sinto merecedora. Nesta peregrinação desejo confirmar a razão da minha vida: a fé no Reino de Deus, na justiça e no respeito às diversidades, na paz, na solidariedade aos sofredores e na coragem da entrega total para deixar-me morrer quando chegar a minha hora. Seja lá como e quando for.
Como nas demais peregrinações, antes da partida, recebo a Bênção do Envio. Pensei realizá-la na Catedral de Goiás, onde há cinco enormes painéis de Cerezo Barredo. Mas os anjos me levaram por outro caminho. A presença das pessoas simples da nossa comunidade de base “Evangelho é Vida” são, para mim, de grande importância. Às quintas-feiras nos reunimos nas casas de diferentes famílias da comunidade para rezar, meditar o evangelho e partilhar as nossas vidas. Não foi difícil conseguir para aquela quinta-feira, 12 de agosto de 2010, antevéspera da minha partida, que o nosso encontro fosse na “Casinha do Menino Jesus”.
Dom Eugênio Rixen, nosso bispo, com a agenda sempre tão cheia, também estava disponível para aquela data. Data e local definidos para a bênção, passei a me ocupar das flores na Capelinha do Menino Jesus, no quintal de casa, e do texto do evangelho que iríamos meditar. Pedi à vizinha Domingas que me ajudasse, não para fazer bolo de arroz – sua especialidade –, a receber as pessoas. Um bolo já estava encomendado para comemorar meu aniversário e dos demais da comunidade que nasceram em agosto. Eu e Eliane nascemos, em anos bem distintos, no mesmo 25 de agosto, e Mário, no dia 29. Chamei também a Ivonete, amiga do grupo Fé e Luz – que reúne pessoas com necessidades especiais e suas famílias. Ela também é de agosto. O bolo de chocolate foi feito pela doceira Francisca, esposa da Ivorné, que concluíra sua passagem pela Chácara de Recuperação.
Ao final do nosso encontro, Dom Eugênio me chamou ao centro e, frente ao Santíssimo, deu-me a Bênção do Envio. Também recebi alegres bênçãos das pessoas que lotaram a capelinha. Entre elas, duas italianas que sempre nos visitam: Nádia, que nos acompanhou na excursão a São Félix em 2008, e Sônia, do projeto italiano Módena Terço Mundo. É costume da nossa comunidade terminar os encontros cantando “Esta casa será abençoada”, batendo palmas animadamente, para alegria das crianças, e enviando com os braços uma boa energia para os quatro cantos da casa. A canção vai se repetindo várias vezes para abençoar as famílias, as crianças, os vizinhos, as visitas... Fui dormir sentindo-me realmente uma pessoa abençoada em poder realizar mais essa peregrinação.
Parti no sábado, 14 de agosto, às 8h30, em direção à Barra do Garça, onde o Araguaia recebe as águas do rio Garça. O simples olhar pela janela do caudaloso Araguaia, rio que me acompanharia ao longo dessa peregrinação, emocionou-me. À Barra, cheguei às 14h30. Eu deveria pegar outro ônibus às 21h30 para São Félix, o primeiro destino da peregrinação. Devido às muitas paradas, só chegaria no domingo, às 9h30, a tempo de me instalar e participar do último dia da festa da padroeira, Nossa Senhora da Assunção.
Passei esse longo intervalo de tempo entre um ônibus e outro na casa das irmãs claretianas. Eu sabia que na singela capela da casa encontraria um mural pintado por Cerezo. Mas não contava em encontrar uma amiga entre as claretianas: a irmã Cida, companheira de Estudo Bíblico da IX Turma do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos). Ela morou dez anos em São José do Xingu e me deu muitas dicas e informações sobre essa cidade, parte do meu roteiro.
Bolo de milho bem quente e cafezinho me esperavam. Depois, na capela, demorei-me em oração. O mural do Cerezo ocupa todo o espaço da parede do altar, envolvendo o sacrário. Do lado esquerdo, Jesus tem, a seus pés, duas irmãs, vestidas como as mulheres do povo, levando cestas com os dois peixes e os cinco pães. No alto, a frase que diz respeito à missão das claretianas: “Dos pés de Jesus saí para evangelizar os pobres”. E do lado direito, homens, mulheres, crianças do povo, com características de negros, brancos e índios, suas enxadas e uma panela vazia, como se esperassem a multiplicação dos pães e peixes (Mateus 14). A frase escrita no alto completa a proposta claretiana: “E voltai para fortalecer o Espírito”. No centro do mural no alto, o Espírito Santo na forma de pomba, sobre o sacrário envolto em uma colorida mandala de temática indígena. Dois temas – a pomba e a arte indígena – que encontraria praticamente em todos os murais de Cerezo Barredo.
Eu estava feliz. As irmãs saíram para os seus afazeres, e eu aproveitei para ir até a margem do rio Araguaia, bem perto dali. Uma arara-azul me chamou a atenção com fortes grunhidos e voou até um cajueiro repleto de enormes frutos vermelhos. E ficou ali esperando a minha foto colorida.
No porto do Baé, assisti ao pôr do sol, com voo de garças, pombas, andorinhas e gaivotas. Cachorros nadavam na margem à minha frente. Do outro lado do rio, veranistas aproveitavam os últimos raios de sol, ao lado de barracas armadas na areia e dentro da água. Passavam alguns barcos, e tive direito até a um show de jet ski. Os carros estacionados nas proximidades das lanchonetes, com chapas de diferentes estados, mostravam que essa cidade cumpre bem a sua vocação turística.
Arcelina Helena Publio Dias
Jornalista desde 1968, foi repórter redatora no Jornal do Brasil e no Estado de S. Paulo. Durante 11 anos, dirigiu o Jornal do DIAP do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar. Depois, foi assessora de imprensa no Senado Federal, no Governo de São Paulo e coordenadora da Comunicação do Ministério do Trabalho. Como professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, lecionou entre outras matérias jornalismo sindical e comunitário. Fez o seu mestrado na Sorbonne, em Paris, França. Em 1995, teve publicado o livro-reportagem sobre a sua experiência de viver com um salário mínimo na periferia de Belo Horizonte: a Crônica do Salário Mínimo, editora Record.
Os outros livros publicados fazem parte de um projeto de peregrinação ecumênica e inter-religiosa de 500 dias entre os excluídos dos cinco continentes: Sinais de Esperança, Vozes, 2000, livro-reportagem sobre a peregrinação entre os excluídos das três Américas; Perdão, África, Perdão, Editora Rede da Paz, 2002, sobre a peregrinação na África e no Oriente Próximo. Além do Silêncio, editora Ave Maria, peregrinação por mosteiros da Europa.
Na cidade de Goiás desde 1998, Arcelina tornou-se consagrada beneditina do Mosteiro da Anunciação.
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