quarta-feira, 16 de março de 2011

Teologia verdadeira e utopias de um mundo novo possível

Prof. Dr. Roberto Zwetsch, Docente de Teologia Prática e Missiologia na Faculdades EST.

foto roberto.jpgPresente aos debates da 4ª edição do Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL), realizado entre 5 e 11 de fevereiro, em Dakar, no Senegal, nesta entrevista o professor da Faculdades EST, Dr. Roberto Zwetsch, afirma que uma teologia verdadeira deve partir do lugar onde as pessoas sofrem, lutam, crêem, clamam, sonham e forjam suas utopias de um mundo novo possível.

Em visita à pequena ilha senegalês de Gorée, Roberto teve a oportunidade de conhecer uma das Casas de Escravos de onde partiram para uma viagem sem volta milhões de seres humanos capturados em suas aldeias no interior da África. “Os africanos tem razão ao reclamar que também se deve dar mais atenção ao holocausto negro do tráfico negreiro, pois segundo estimativas, 40% das pessoas morriam na travessia e eram simplesmente descartadas e jogadas ao mar”, sublinhou.

Inserido nas iniciativas de grupos e movimentos sociais que compõem o Fórum Social Mundial (FSM), o grupo de representantes do FMTL discutiu como os desafios globais afetam a vida de comunidades e religiões, e que respostas a teologia pode proporcionar a partir do ponto de vista das vítimas do sistema global.

Autor de numerosos artigos escritos em revistas teológicas e periódicos, Roberto publicou recentemente, pela editora Sinodal, a sua tese de doutorado intitulada Missão como com-paixão. Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana.

A professora da Faculdades EST e coordenadora do Grupo Identidade, Ms. Selenir Kronbauer, também viajou à África para acompanhar as discussões do FMTL.

Qual o significado do Fórum Mundial Teologia e Libertação (FMTL) para as atividades teólogicas (ministerial, assessoria, docência e publicações) nos ambientes eclesial, acadêmico e popular?


Significado do FMTL. Entendo que o significado do FMTL é sempre limitado. Demora até que as discussões feitas num âmbito internacional cheguem aos ambientes em que seus participantes estão cotidianamente envolvidos. Mas o que me parece importante é o fato de este fórum ser uma espécie de caixa de ressonância dos desafios que emergem da vida cotidiana, das lutas de mulheres e homens por sua dignidade, por seus desejos mais caros, enfim, por sua libertação de tudo o que oprime, desqualifica e destrói. Um dos argumentos que mais apareceu nos debates durante o seminário dos dois últimos dias do FMTL foi de que uma teologia verdadeira deve partir não dos dogmas ou das Escrituras como texto sagrado, mas da vida mesma, ali onde as pessoas sofrem, lutam, crêem, clamam, sonham e forjam suas utopias de um mundo novo possível, onde se possa experimentar o que os aymara da Bolívia chamam de bem viver. Chamou a nossa atenção a dificuldade que sentimos para incluir no nosso debate a teologia muçulmana, pois mesmo convidados, não tivemos a possibilidade de ouvir representantes dessa religião tão importante no mundo atual, sobretudo no norte da África e Oriente Médio.

Que regiões do mundo estiveram representadas no FMTL?


Regiões do mundo no FMTL. A África evidentemente, mas com participação que poderia ter sido maior e mais representativa. Depois, boa participação de representantes da América Latina, Europa, América do Norte, Ásia e Austrália. Para viabilizar tal participação foi muito importante o apoio das agências ecumênicas de cooperação internacional, que enviaram alguns representantes, mulheres e homens, além das organizações conhecidas como ASETT, Ameríndia, CETELA, ASTE, CETEQ, Instituto de Teologia e Política de Münster, Programa de Povos Indígenas do CMI, FLM, Rede de Cristãos na Espanha e Itália e outras.

Qual a representatividade ecumênica das delegações enviadas por igrejas ou instâncias eclesiais?


Delegações. O FMTL não é um fórum de igrejas e organizações ecumênicas, antes se compõe de pessoas, associações e organizações acadêmicas e de pastoral popular, contando com o decidido apoio de agências internacionais de cooperação, sobretudo da Europa. Ele está organizado ecumenicamente com um Conselho Permanente formado por representantes de oito instituições que deram seu apoio desde o primeiro Fórum, e mais um Comitê Internacional Consultivo integrado por representantes de instituições ou organizações que dão sua adesão ao redor do mundo. O FMTL conta com uma secretaria permanente que funciona na PUC-RS, em Porto Alegre, e pode ser acessado pelo web site: www.wftl.org .

Como foi a participação de grupos nos debates e que ênfases mais lhe despertaram a atenção?


Após a abertura oficial, no dia 5/2, tivemos um painel sobre a África e os desafios da teologia hoje. No domingo, fizemos uma visita à bela ilha de Gorée, com uma população de 1.5 mil pessoas que basicamente vive do turismo e do artesanato. Na ilha conhecemos uma das tantas Casas de Escravos de onde partiram para uma viagem sem volta milhões de seres humanos capturados em suas aldeias no interior da África e que eram traficados como mercadoria para servirem de escravos nas fazendas das Américas e do Caribe. Foi uma das experiências mais candentes ver onde essas pessoas, homens, mulheres e crianças ficavam à espera do próximo navio negreiro que as conduziria ao inferno da escravidão. E isto durou mais de trezentos anos com a complacência de todas as igrejas cristãs! Naquela mesma casa estiveram o Papa João Paulo II, o ex-presidente Lula, Nelson Mandela e outros importantes líderes mundiais, assumindo compromissos na luta contra o racismo e todas as formas de escravidão. Nos dois dias seguintes, desta vez o FMTL se reuniu no próprio Fórum Social Mundial pela primeira vez, onde organizamos onze oficinas sobre temas atuais que desafiam as comunidades eclesiais e as academias teológicas como, por exemplo: Sabedoria dos Povos Indígenas; Religiões e Paz; Islamismo e Cristianismo; Feminismo, Gênero e libertação; Religiões, migração e libertação; Cura e Saúde na África; Crise do capitalismo e direitos sociais globais; Teologia e ecologia; Teologia, negritude e libertação; Crise civilizatória e experiência religiosa; CEBs e Teologia da Libertação. Nos dois últimos dias realizamos um Seminário a partir de grupos de discussão formados em torno das quatro línguas que se utilizaram oficialmente no evento: espanhol, português, inglês e francês. Os grupos foram instigados a debater como os desafios das mudanças globais contemporâneas afetam as comunidades e as religiões e que respostas a teologia pode proporcionar, desde o ponto de vista das vítimas do sistema global, dos mais pobres e vulneráveis. Houve um grande entrosamento e muita participação nos oito grupos formados, por vezes um tenso debate entre posições divergentes, o que se confirmou no grande plenário do último dia, que propôs não apenas a continuidade do processo do FMTL, como também o fortalecimento das redes de comunicação e articulação que emergem em todos os continentes e que articulam ações de transformação de mentalidade e da própria realidade local e nacional, tanto a partir do nível comunitário eclesial como para além dele.

Você identificou elementos novos no diálogo teológico com setores discriminados: os pobres, as mulheres, as populações negras e indígenas, e os grupos marginalizados dos centros urbanos?


Elementos novos. Sim, como, por exemplo, o desafio africano de uma solidariedade que parte do cotidiano, do encontro em torno de uma mesa comum que serve não apenas para as pessoas se alimentarem, mas também para compartilharem recursos, desejos, sonhos e visões. O desafio interreligioso, do encontro de diferentes que conversam e celebram juntos a partir de distintas experiências espirituais foi outro aspecto que chamou a atenção, tanto por sua urgência (estamos apenas no começo de um longo processo), como pelo despreparo que ainda manifestamos nesse campo. Por fim, a necessária crítica ao capitalismo mundial dominado pelo setor financeiro dos bancos e que, na hora da falência, apela aos estados e cobra a dívida dos povos e, neles, dos mais pobres, como a elevação especulativa dos preços dos alimentos vem demonstrando, sobretudo na África e Oriente Médio, fato que tem sido colocado como um dos motivos das recentes revoltas populares no mundo árabe.

Que papel os meios eletrônicos assumem hoje para o mundo teológico da periferia (comunicação - rádio, jornal, sítio web, revistas teológicas digitais, comunidades nas redes sociais), além das já conhecidas pastorais, educação teológica e assessorias?


Não sei se tenho condições de responder, mas no campo da teologia ainda é tímida a utilização dos meios eletrônicos de modo mais consistente. É um dos desafios urgentes para o futuro imediato, tanto nos seminários e faculdades de teologia como nas comunidades eclesiais. E nesse sentido, o campo da comunicação continuará a ser uma necessidade prioritária, se pensamos no complexo mundo da informação que está despontando neste novo século.

Em que regiões do mundo o FMTL conseguiu fazer avanços efetivos nos últimos anos?


De certa forma, entre as articulações que se expressam no FMTL despontam as da América Latina, Europa e América do Norte, especialmente Canadá. Uma das expectativas para o futuro é integrar mais grupos da África e da Ásia e Oceania.

Como tem se mostrado a teologia do diálogo inter-religioso para as lideranças pastorais e leigas presentes ao evento?


Diálogo interreligioso. Urgente e difícil, ao mesmo tempo. Pois no FMTL se procura não trabalhar em abstrato, mas a partir de situações concretas de vida. E aí a complexidade das situações cobra seu preço, por exemplo, ao deixar claro que não há respostas prontas para as relações interreligiosas e que cada situação merece estudo, abertura de mentes e corações, e uma profunda experiência de compaixão e cuidado para com o diferente.

O que mais te tocou na experiência deste FMTL de 2011?


Foi o contato com as mulheres, crianças e homens do Senegal. Senti na pele a dificuldade da comunicação por não falar francês nem uma das línguas nativas como o wolouf. Mesmo assim, foi possível certo entendimento a partir do inglês ou, em certos casos, falando português e espanhol com pessoas que vivem na África de colonização portuguesa. A visita à ilha de Gorée foi impactante. É indescritível imaginar como era possível viver e sobreviver nos porões das Casas de Escravos para depois enfrentar a longa travessia sem volta e que levaria aquela pobre gente ao inferno da escravidão por mais de 300 anos. Os africanos tem razão ao reclamar que também se deve dar mais atenção ao holocausto negro do tráfico negreiro, pois segundo estimativas, 40% das pessoas morriam na travessia e eram simplesmente descartadas e jogadas ao mar. Havia nesses lugares um cubículo especial para homens com menos de 60 kg e que servia para que engordassem de tal modo que tivessem forças para suportar a viagem e chegarem vivos no outro lado do Atlântico. Estas pessoas foram tratadas simplesmente como mercadorias, força de trabalho, e jamais tidas como seres humanos com dignidade e direitos. Esta dívida ainda pesará por muitos anos sobre a sociedade ocidental e, principalmente, sobre as igrejas cristãs. E, ainda que louváveis, não serão pedidos oficiais de perdão aos africanos que reduzirão a necessidade de novas relações de justiça, direito e cidadania para o povo negro em todos os lugares para onde ele foi levado.

E como fica a teologia latino-americana diante deste espectro mundial, em sua percepção?


A teologia latino-americana e, em particular, a teologia da libertação vivem um momento crucial de reconstrução. Durante o FMTL discutiu-se a necessidade de retomar o projeto histórico da teologia da libertação, só que neste momento a partir de novos desafios propostos pelos movimentos de mulheres, indígenas, negros, jovens e camponeses em muitos lugares. Teologia feita desde o chão da vida e auscultando as dores, os clamores e as esperanças que vem dos lugares mais inauditos, lugares teológicos em que o Deus de Jesus se manifesta e se oculta, ao mesmo tempo, e desde os quais é preciso forjar um mundo novo possível na esperança da fé que luta, canta, celebra, mas jamais se entrega aos poderosos, aos muitos impérios que continuam a dominar os povos e impedem a construção de uma nova história, democrática e em direção a um mundo mais fraterno e justo. Talvez se devesse enfatizar, novamente, que a teologia da libertação não morreu, pois enquanto houver pobres haverá a necessidade de sua libertação e, portanto, de uma teologia que lhes diga respeito e ajude em sua caminhada. O que não significa, contudo, simplesmente preservar um legado, mas, pelo contrário e em boa tradição dialética, a retomada crítica de sua permanente necessidade de superação diante da realidade em constante transformação. Teologia para outro mundo possível, como foi o título do livro do primeiro Fórum, realizado em Porto Alegre em 2005.

Fonte: Faculdades EST

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