“ (...) as práticas socioculturais em ação na tripla operação que constitui a memória (...) estão imbricadas com relações masculinas/femininas reais e, como elas são produtos de uma história”1.
Novas abordagens epistemológicas propostas para o estudo da históriaii permitiram, nessas últimas décadas, perceber que grupos religiosos, especialmente das freiras, fazem leituras diferenciadas do evangelho, apropriam seus significados e os reelaboram a partir de suas experiências cotidianas.
As formas de interpretação dos enunciados, sua apropriação e representação dos significados elaborados foram trazidas à baila a partir dos pressupostos teóricos da História Cultural que permitiu o cruzamento de categorias como gênero, religião e etnia na análise e escrita da históriaiii.
Este artigo propõe analisar como identidades (mantidas no plural porque assim são elaboradas e representadas no interior dos grupos que partilham, muitas vezes, interpretações semelhantes do evangelho) religiosas foram construídas pelas freiras a partir da leitura e vivência da Teologia da Libertação e como o movimento feminista ajudou no questionamento da idéia de liberdade e Reino de Deus para elas, ainda que não o tenham assumido por completo. As formas de acumulação, rememoração e ordenamento do relato elaboram a memória e mostram sistemas plurais e diferenciados na composição identitária.
Segundo Michelle Perrot, há pouco espaço na narrativa histórica tradicional para se pensar a memória da história das mulheres. Com lugar reservado aos grandes eventos masculinos e sempre contado por eles, às mulheres está reservado o silêncioiv. Isso não foi diferente dentro da estrutura católica, na qual as mulheres que optaram pela vida celibatária, as freiras, não aparecem como parte da hierarquia e suas atividades, na maioria das vezes, não levadas em consideraçãov.
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RELIGIOSIDADES – ANPUH -Questões teórico-metodológicas no estudo das religiões e
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E ainda mais, nas narrativas, os espaços destinados às mulheres são sempre aqueles ligados ao âmbito do lar, da família, dos filhos, enfim, daqueles que não são ocupados pelos homens. Hoje já existe uma farta bibliografia que mostra o contrário e as categorias de análise que permitem investigar as relações de poder nesses espaços ocupados por homens e mulheres fazem parte do arcabouço da história cultural. É com base em seus pressupostos que desenvolvemos a análise sobre a construção da identidade religiosa feminina. De acordo com algumas interpretações foram espaços conquistados, sob o ponto de vista de outras, os únicos espaços concedidos às mulheresvi. É sobre isso que vamos debater.
De acordo com Bidegain, é ponto fundamental essa nova leitura porque permite entender a estruturação das relações de poder que mantém as mulheres invisíveis na elaboração da história das religiõesvii.
A América Latina e a histórica luta contra a opressão feminina
Para Cecília Domezi, o discurso que normatiza a dominação das mulheres na Igreja Católica é pautado nas interpretações de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino que procuram sempre subordinar a mulher, espírito de paixões e inconstâncias à razão da alma sempre atribuída ao sexo masculino. As ideias que permearam o clero cristão sempre atribuíram às mulheres o caráter de fonte poluidora em função de seu corpo, ainda que no mesmo fosse atribuída a vidaviii.
Após o Concílio do Vaticano II muitsa mudanças de processaram no âmbito da América Latina. Embora o Concílio trouxesse como novidade uma ruptura com a Igreja tradicional, enfocando uma concepção corporal unificada e não deprezando o corpo, no cultivo da pessoa integral. Mesmo abrindo as variadas formas de interpretação e análise da figura humana, agora entendida não mais como homem/mulher, mas como pessoas, esse ideal não se concretizou. Apenas pessoas ligadas à hierarquia foram chamadas à participação. Quanto às mulheres, apenas as consagradas e em número muito reduzido com relação aos homensix.
(...) era a primeira vez, na história dos Concílios, que se admitia a presença de mulheres, 23 ao todo. Homem e mulher foram assumidos na sua relação de cônjuges, num „quadro normal‟ da condição humana e do matrimônio cristãox.
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Da fase seguinte, nenhuma outra mulher pode participar.
Mas, foi essa abertura da Igreja que permitiu que nascesse as bases para a Teologia da Libertação. Uma leitura que se pretendia crítica da realidade da Igreja Católica e que a tornava mais voltada para as realidade, fazendo uma opção pelos pobres, pelos mais miseráveis, observando de perto a situação das mulheres oprimidas, operários, pessoas do campo, etcxi.
Contudo, segundo Ivone Gebara, mesmo a Teologia da Libertação que procurava discutir a libertação econômica não levava em conta a situação das mulheres em suas diferenças de gênero. Às mulheres ainda estavam designados os papéis de mãe, cuidadora de doentes, do lar, enfim, lugares considerados sem importância na estrutura maior que era o capitalismoxii.
A libertação proposta por toda a gama de movimentos que ocorreram na década de 70 ainda estava pautada em heróis masculinos, não levando em consideração as injustiças produzidas a partir da diferenciação homem/mulher. As informações acerca das condições das mulheres e as categorias de análise decorrentes da estrutura montada para analisar a política e a economia não eram suficientes para incorporar as necessidades do gênero feminino. Mesmo a simbologia religiosa era vista sob esse aspecto, com uma face masculina, acentuando a depedência da mulher em relação ao homemxiii.
De acordo com Gebara, foi o feminismo que a fez repensar as imagens religiosas que havia formulado ao longo de sua vida e a questionar todas as formas de dominação masculina sobre a mulher, nas quais se inserem a questão dos contraceptivos, aborto, aborto, políticas efetivas para as mulheres, etc. Tudo isso a levou a questionar o próprio domínio da mulher através do corpo. A vivência das mulheres mostrava a ela que libertar a mulhere desse domínio sobre seu corpo era, na verdade, mudar toda a referência de identidade e a compreensão da vidaxiv.
A vivência desses questionamentos se deu, principalmente para as freiras, no momento da aplicação da Teologia da Libertação nas Comunidades Eclesiais de Base. Muitas irmãs abandonaram os conventos e escolas de suas Ordens e passaram a viver nos bairros pobres e periferia das grandes cidades ou em locais de extrema pobreza espalhados pelo Brasilxv.
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Nesses lugares, ainda que elas não tenham assumido o movimento feminista como parte de suas vidas, passaram a questionar as ordens e a estrutura patriarcal da Igreja Católica a partir da vivência nessas comunidades de base, junto com mulheres, homens, crianças de variadas matizes.
A reelaboração da identidade religiosa
Antes da ida para as CEBs, onde acontece toda reformulação da identidade religiosa, as frerias viviam em colégios, orfanatos, hospitais e se envolviam organizações complexas. As freiras estavam acostumadas e eram treinadas para o desenvolvimento de atividades como administração econômica, organização do espaço interno, ou seja, refeitório, lavanderia, Igreja e salas de aula que pressupunham ideais de ordem. A vigilância sobre esses espaços e, especialmente, sobre o trabalho de ordenação das irmãs era constante, pois tais ambientes deveriam estar impecáveis. A memória apresentada pelas irmãs durante as entrevistasxvi, embora o foco tenha sido o seu trabalho nas CEBs, revela, em comparação, que a rotina desses conventos e escolas era idealizada, marcada pela disciplina. Era a repetição dos gestos que marcava a manutenção da disciplina.
No momento em que saíram de seus lugares originais de vida religiosa e entraram em contato com a vida do povo pobre e miserável, as irmãs passaram a construir novos discursos legitimadores da militância nas CEBs e a exercê-lo apoiadas no pressuposto religioso. A associação que fizeram da figura de Cristo com o povo sofredor legitimava a sua nova opção pelos pobres e oprimidos. Novas identidades, novos significados religiosos, um movimento múltiplo e híbrido na efetivação da construção de uma nova imagem da mulher freira a serviço de Deusxvii.
Contudo, ainda que se diga que todo projeto das CEBs tenha sido pensado pelos homens da igreja, já que o Concílio do Vaticano II foi quem deu as orientações para sua formação, o fato de terem sido as mulheres religiosas também responsáveis por sua implantação e por abrirem espaços à participação de pessoas em geral, homens e mulheres leigos nessas comunidades, entendemos que esse trabalho foi fundamental para certa emancipação das irmãs da estrutura eclesiástica.
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Diante dessas possibilidades pensamos que as condições produzidas historicamente: a trajetória da mulher na construção de uma consciência feminina, a conscientização em prol da cidadania e as conquistas sociais das mulheres no Brasil durante os anos de 1960, foram frutos do trabalho delas, modelados, redimensionados, criados por elas. Portanto, aceitar que todo movimento de luta, ocorrido no Brasil durante esses anos, foi influenciado e trazido de fora é factível, porém, diante dos acontecimentos vividos aqui, suas proposições foram adaptadas à realidade brasileiraxviii.
Assim, os espaços conquistados pelas mulheres em geral nesse período de 1960 foram múltiplos, multifacetados, atuando nos meandros dos espaços masculinos, conquistando-os, alterando-os, reconstruindo-os, e abrindo espaços outros, dentro e fora desse universo dito do homemxix. Entretanto, devemos lembrar ainda nas concessões e negociações entre homens e mulheres para o estabelecimento desses espaços – que ora podem sofrer alterações em suas práticas discursivasxx. As possibilidades dessas transformações podem ser percebidas na memória apresentada por essas mulheres no momento em que nos relatam como foi o impacto com o mundo dito exterior daquele que viviam antes, nos anos de 1960.
Percebemos essas dinâmicas sociais e de construção da memória a partir dos relatos da história de vida das mulheres freiras entrevistadas. Como entrevistamos homens também, foi interessante comparar as histórias e perceber que, mesmo influenciados pelos movimentos da década de 1960, as transformações na Igreja e na sociedade, fazem parte de um discurso religioso. Discurso que para as mulheres resultou no questionamento da ordenação da Igreja Católica e do papel com único representante de Deus.
Ao ir para as CEBs, as irmãs eram colocadas em bairros cujo local nem sempre tinha um trabalho pastoral desenvolvido e, muitas vezes, o padre estava sozinho para fazer esse tipo de evangelização. Com isso, foram as irmãs que iniciaram, em vários locais no Brasil, a obra de fomentação da Teologia da Libertação. Enquanto ao padre era reservado o trabalho exclusivo na paróquia, uma vez que não é permito às mulheres nenhuma possibilidade de direção dos ritos sacramentais da Igreja Católica, foram as
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irmãs que se inseriram nos mais diversos bairros para implantar a Teologia da Libertação, ainda que em alguns lugares esse trabalho já tivesse sido iniciado.
Ao entrar em contato com os problemas mais emergentes das mulheres pobres, as freiras passaram a questionar seu próprio papel dentro da Igreja Católica e fora da estrutura hierárquica. O resultado mais imediato disso foi o abandono do hábito por várias freiras e a insistência de outras em participar dos espaços concedidos e conquistados por elas nesse jogo de construção de identidades que se revela de profundo poder político.
Notas
i PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru/SP: EDUSC, 2005. p. 43.
ii HUNT, Lynn. A nova história cultural.São Paulo: Martins Fontes, 2001. E também: BURKE, Peter. Variedades de história cultural.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
iii BIDEGAIN, A. M. (org.). Mulheres: Autonomia e controle religioso na América Latina. 1996. São Paulo/Petrópolis, Vozes/CEHILA.
iv PERROT, Michelle. Op. Cit.p. 33.
v NUNES, M. J. R. Vida religiosa nos meios populares. 1985. Petrópolis, Vozes.
vi BOLHANI, C. A. A atuação de mulheres em comunidades de base católica, reprodução ou libertação? s/d. São Paulo, Universidade Metodista de São Paulo, s/d.
vii BIDEGAIN, A. M. (org.). Op. Cit.
viii DOMEZI, Maria Cecília. Uma leitura da Gaudium et Spes na perspecitiva de mulheres latino-americanas. In: www.adital.com.br. Acessado em janeiro de 2010.
ix Idem, ibidem.
x Idem, ibidem.
xi TEIXEIRA, F.L.C. A gênese das Cebs no Brasil – elementos explicativos. São Paulo: Loyola, 1987.
xii GEBARA, Ivone. As águas do meu poço: reflexões sobre experiências de liberdade. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 130-131.
xiii Idem, ibidem. p. 132.
xiv Idem, ibidem. p. 133-143.
xv NUNES, M. J. R. Op. Cit.
xvi No trabalho de doutorado que desenvolvo, um das fontes utilizadas para a pesquisa foi entrevistar várias irmãs que participaram das CEBs. Nesse sentido, as lembranças relatadas por elas são entendidas como discursivas, ou seja, parte da forma como elas elaboram sua identidade. Dessa forma, a memória é entendida como um recurso discurso construtor de identidade.
xvii Vários documentos mostram a associação do povo sofrido com Cristo e o trabalho das mulheres em geral a serviço de Deus, entre eles “Maria mulher do povo, mãe da esperança”, Arquidiocese de Porto Velho, adaptação de material elaborado pela equipe de CEBs da região industrial da Arquidiocese de BH, maio de 96, pasta 1997ª; “CEBs, povo unido, semente de uma nova sociedade”, Canindé (CE), 4 a 8 de julho de 1983, 5º Encontro Intereclesial de Base, pasta 0684A; “Mulher e homem fazendo acontecer o natal da sociedade nova”, subsídio para encontros de vizinhos da Comunidades de Base de Canoas (centro de formação Santo Dias), Natal – RN, 1990, pasta 0027ª; “A mulher geradora da vida – preparação do Natal, CEBs Zona Sul, 1990”, Porto Alegre, RS. Pasta 2163ª.
xviii Outra possibilidade a ser considerada é diminuir o que a mulher conquistou a partir da interpretação de que o homem teria permitido tal conquista. Isso pode ser mais uma das estratégias do discurso masculino para provar sua superioridade. Essa prerrogativa nos faz pensar ainda que, ao considerar o movimento feminista no Brasil como vindo de fora apenas, seria, na verdade, concordar com esse discurso.
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xix MURARO, Rose Marie. Memórias de uma mulher impossível. São Paulo: Record, 1999.
xx CHARTIER, Roger. À beira da falésia – a história entre certezas e inquietude. 2000. Trad. Patrícia Ramos. Porto Alegre, UFRGS
marili.bassini@gmail.com
Marili Bassini
Faculdade Anhanguera de Santa Bárbara D‟Oeste – SP
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