DEFINIÇÃO DO PROBLEMA
A partir de meados dos anos 80 e sobretudo, na última década, a sociedade brasileira vem apresentando uma pluralidade de iniciativas e expressões religiosas que têm levado multidões à participação de cultos em praças públicas, ao aumento da audiência de programas religiosos e à presença de líderes desses movimentos na televisão brasileira. Nesse contexto podem ser observadas novas configurações das crenças que vão indicar uma ampliação do campo religioso com destaque para as religiões consideradas mágicas, flexíveis, capazes de conjugar práticas racionais presentes na modernidade - como o uso de meios de comunicação de massa - com as práticas emocionais, com ênfase no sentir, no uso do corpo e da música.
Somam-se a esse cenário novas formas de relacionamento ou pertença com as instituições religiosas que são ressignificadas enquanto locus legítimo para a vivência da religião, conforme pudemos constatar na pesquisa sobre as Tendências do Catolicismo nas metrópoles, recentemente concluída e publicada sob o título: Desafios do Catolicismo na cidade: pesquisa em regiões metropolitanas brasileiras. Essa realidade suscita a necessidade de ampliar o estudo do fenômeno religioso no país pois, se a experiência do sagrado na sociedade contemporânea está assumindo formas mais diversificadas, pouco se conhece sobre o sentido que essas formas oferecem e sobre as relações que podem ser estabelecidas entre elas e o debate mais geral da modernidade contemporânea.
CONFIGURAÇÕES DA RELAÇÃO INDIVÍDUO E RELIGIÃO NO BRASIL
Nos acostumamos a falar nas últimas décadas sobre sincretismo religioso, pluralismo e privatização do sagrado. Entretanto, considerando-se os dados dos último CENSO percebe-se a emergência de um novo elemento: o aumento vertiginoso de pessoas que se denominam sem-religião. A presença deste grupo na sociedade brasileira, de forma mais intensa nos últimos anos, pode ser interpretada dentro das teorias clássicas da relação entre religião e modernidade onde se constata a existência do uma espécie de narcisismo religioso caracterizado sobretudo, pelo estabelecimento de uma religiosidade anônima onde palavras como Cosmo, Energia, Espírito etc. recebem atributos de um absoluto religioso bastante diferenciado do sentido de transcendência dado pelo Cristianismo.
Muda também a noção de religião que tanto pode ser concebida como uma instituição com espaço físico e jurídico definido, constituídos pela formação de comunidades fraternas, quanto pode ser simplesmente um conjunto de atitudes que definem um modo de vida, ou o culto a si mesmo expresso em frases do tipo: "quem faz a minha religião sou eu". Assim, a religião passa a ser muitas vezes, concebida de maneira diferente da elaborada por Durkheim, onde o fenômeno religioso é definido como sendo constituído naturalmente em duas categorias: as crenças e os ritos, ou seja, as representações e as atitudes frente a essas representações, que irão compor um sistema solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas. A experiência religiosa passa então a ser possível ainda que sem o auxílio de um grupo de apoio, porém, se torna cada vez mais difícil dividir ou classificar os indivíduos entre crentes ou não crentes, um pouco na perspectiva de Robert Bellah, que em seu clássico trabalho Além da Crença (2), afirma que todos nós acreditamos em alguma coisa e, sobretudo nas sociedades pós-tradicionais, as pessoas vivenciam um desejo intenso de autenticidade que faz com que a escolha religiosa e a própria crença sejam elementos determinantes dessa busca.
Na sociedade brasileira podemos observar que não são as crenças religiosas que estão em crise e, de certo modo, nem tampouco as instituições igrejas, por falta de adeptos, mas ao que nos parece, vem ocorrendo uma maior pluralidade nas formas de definição da pertença ou nos modos de ser religioso. Esses sim, são mais experimentais, circunstanciais, redefinindo a relação entre o indivíduo e o sagrado. Essa relação pode contemplar tanto a crença na existência de um Deus transcendental e pessoal, quanto a crença em um Absoluto imanente e impessoal (3), além de outras formas de composição de elementos que constituem um sistema de crenças.
A fluidez ou a diversidade das crenças religiosas têm sido pouco estudadas pelos analistas preocupados com o estudo das religiões. Entretanto, se percebe a existência dos mais diversos tipos de práticas que se constituem pautadas justamente em um arsenal de crenças presentes no imaginário social. A compreensão dos elementos presentes na estrutura social que contribuem na configuração desses novos cenários se torna fundamental para que seja possível mapear mais claramente as representações sobre a religião em nossa sociedade e as implicações dessas representações na conduta dos indivíduos, seja na esfera pública ou privada. Como analisa François Champion (4), na ordem da representação social, a crença é aquilo que importa para o indivíduo, ou seja ela mobiliza ou pode mobilizar e carrega também uma carga de afeto.
Não estamos preocupados portanto, apenas com a crença em si mesma, mas entendemos que é a partir delas que os indivíduos vão realizando suas escolhas que adquirem cada vez mais um caráter de transitoriedade. O indivíduo pode buscar uma transcendência como modo de auto-aperfeiçoamento, ou simplesmente como uma forma de solucionar questões práticas do dia-a-dia, conforme estudos realizados por outros pesquisadores (5).
SOBRE OS GRUPOS A SEREM ANALISADOS
RCC - Renovação Carismática Católica - A RCC - Renovação Carismática Católica - é uma expressão do catolicismo que tem crescido significativamente no Brasil, sobretudo nos últimos 10 anos, tornando-se objeto de investigações das ciências da religião. Os estudos têm destacado, entre outros aspectos, sua similitude com os pentecostais, sua ênfase na pertença institucional, seu caráter redentorista no sentido de autodefinir-se com um Movimento que deverá renovar toda a Igreja.
Entretanto, percebe-se a necessidade de investigar mais detidamente o rosto atual da RCC no país e as transformações internas que possivelmente vêm atravessando. Algumas destas mudanças podem ser indicadas facilmente: maior incursão na mídia, maior penetração nas camadas populares e maior envolvimento com questões sociopolíticas, aspecto que desde sua origem, não era tratado como prioritário (6).
Com a penetração nas camadas populares, a RCC parece assumir novas expressões e novas práticas na comunidade religiosa e possivelmente se poderá encontrar também mudanças no que se refere ao seu sistema de crenças. Em que acreditam os católicos carismáticos? Onde estão os pontos de aproximação ou de afastamento do sistema de crenças do catolicismo oficial? Haveria dentro desse grupo uma penetração de formas de crer mais fluidas e menos consonantes com os conteúdos religiosos do catolicismo? Como essas formas se manifestam? A posição social que cada indivíduo ocupa, bem como sua história de vida, irão provavelmente ter um papel importante na composição dessas crenças. Portanto, a investigação em todos os grupos analisados nessa pesquisa deverá contemplar dois estratos sociais: camadas média e baixa.
CEBs - Comunidades Eclesiais de Base - Presentes no Brasil desde os anos 60, as CEBs se auto-caracterizam como um novo modo de ser Igreja onde prevalece uma visão de mundo mais secularizada no sentido da ênfase ao engajamento sociopolítico de seus adeptos, e uma forma de vinculação institucional mais contestadora. Profundamente marcada pelas propostas conciliares de fim dos anos 60, as CEBs significaram uma inovação em termos de pertença do catolicismo na sociedade suscitando numerosos estudos, sobretudo nos anos de 1970.
Uma das maiores críticas que as CEBs receberam focou a questão do privilégio de questões sociopolíticas em suas práticas, subestimando outras que estariam mais ligadas à dimensão do sujeito e de sua subjetividade. Sobressaíram naquele período as análises dicotômicas entre razão e emoção.
Na década de 90, alguns dos principais teólogos no Brasil (7) que tiveram forte influência na constituição das CEBs, produziram vários trabalhos dando destaque a dimensão mística da experiência religiosa e propondo uma visão de mundo e uma conduta de vida mais integradas entre o homem e a natureza, numa dimensão até mesmo planetária. Assim é possível pensar que também no universo tido como altamente racionalizado das CEBs se possa encontrar a penetração de novas crenças e ressemantizações do discurso sociorreligioso. Com estariam se comportando os membros das CEBs frente às múltiplas ofertas religiosas? Há mudanças nas formas de crer desse grupo? Como estariam articulando o discurso fortemente marcado pela Teologia da Libertação, com ênfase nas mudanças estruturais de nossa sociedade, com formas alternativas de composição da crença tão facilmente observáveis na vida social?
Pentecostalismo - Presentes no Brasil desde o início do século XX, as Igrejas pentecostais são as que parecem apresentar maior diversificação no campo religioso brasileiro. Atualmente podemos falar de um pentecostalismo histórico composto pelas Igrejas pioneiras tais como a Assembléia de Deus, a Congregação Cristã do Brasil e a Igreja Quadrangular, e também de um novo pentecostalismo que, em seu interior mesmo se diversifica, ou seja, dentre os neo-pentecostais as práticas se apresentam múltiplas e ao mesmo tempo singulares. Um fiel pentecostal tanto pode possuir uma moralidade rígida e manter um certo afastamento das esferas públicas, quanto pode pertencer a campos como o da política. Ser pentecostal é ser renovado no espírito e os sentidos atribuídos a essa renovação irão determinar as atitudes frente à vida social.
Compreende-se que as crenças em novos símbolos e uma interpretação do mundo mais ligada ao campo da metafísica, faz parte da mentalidade contemporânea, sobretudo nas grandes cidades. Nos perguntamos se estas crenças penetrariam também o universo pentecostal e de que modo. Se observarmos casos recentes de conversão tais como o da cantora Baby Consuelo, veremos que o discurso embora enfatize o nome de Jesus, característico do discurso pentecostal, também assemelha-se à conduta de adeptos do chamado universo New-Age ou Nova Era onde se enfatiza a valorização da intuição e do conhecimento experimentado.
Para José Magnani (8) o aparecimento de uma cultura psicológica favorecida pela difusão da psicanálise nos anos 70, levou muitas pessoas a buscarem mais auto-conhecimento e uma certa sacralização de seu mundo interior e, por este motivo, as propostas da New Age não suscitam igrejas permanentes, mas antes a valorização do recesso, do inner.
Interessa-nos portanto, mapear as práticas religiosas em grupos cristãos: Igrejas Pentecostais, Comunidades Eclesiais de Base e RCC e ainda entre os sem-religião, recaindo o foco de análise nas práticas que apresentam maior fluidez ou inovações, quando comparadas com as crenças e práticas já tradicionais no universo de cada grupo. Em relação aos indivíduos que se auto-denominam sem-religião, procuraremos identificar se possuem alguma crença religiosa e como as mesmas são por eles significadas, além da relação que estabelecem entre suas crenças e sua conduta social.
Em todos os grupos analisados se buscará conhecer como se articulam as dimensões da emoção e da razão e como a experiência religiosa têm contribuído na construção da identidade dos sujeitos contemporâneos.
METODOLOGIA
A pesquisa comparativa será realizada em três níveis distintos: 1) entre os grupos religiosos (RCC, CEB's, Assembléia de Deus) e os sem-religião; 2) em diferentes estratos sociais (camadas média e popular) 3) entre seis principais cidades brasileiras. Serão realizadas 10 entrevistas curtas com simples membros e 2 histórias de vida com lideranças de cada grupo religioso, em cada uma das cidades pesquisadas. Ao todo serão realizadas 504 entrevistas.
NOTAS:
- Agradeço os comentários e sugestões de Katia Mª Cabral Medeiros, pesquisadora do CERIS - Voltar ao texto;
- Bellah, Robert. Beyond belief. - essays on religion in a Post-traditional world. London, Harper&Row: 1970 - Voltar ao texto;
- Conforme observado no Congresso Internacional do episcopado colombiano: " Nuevas Ofertas Religiosas" ¿ Renovacion o Decadencia? realizado na Universidade de Santo Tomás. s/d - Voltar ao texto;
- Champion, Françoise. "Constituição e transformação de aliança ciência e religião na nebulosa místico-esotérica". Revista Religião e Sociedade. Vol. 21 nº 2, Rio de Janeiro: IISER, 2001 - Voltar ao texto;
- O interessante artigo de Reginaldo Prandi apresenta várias biografias que acenam para essa trasnsitoriedade. Ver PRNADI, Reginaldo. Religião, biografia e conversão: escolhas e mudanças. Tempo e Presença, nº 31, Rio de Janeiro: Koinonia, 2000 - Voltar ao texto;
- No estudo pioneiro realizado pelo CERIS nos anos 70 identificou-se que 47,3% dos informantes declararam não possuir nenhum engajamento social. Ver: Ribeiro de Oliveira e outros. In: Renovação Carismática Católica. Petrópolis, Vozes, 1978 - Voltar ao texto;
- O ex-frei Leonardo Boff e Frei Betto - Voltar ao texto;
- Magnani, José Guilherme. O Brasil da Nova Era. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. - Voltar ao texto;
Construímos um primeiro informe para o Rio de Janeiro, podendo ser agregados e sistematizados para as demais cidades brasileiras, novos dados sobre a população dos bairros.
CERIS: Centro de Estatisticas Religiosa e Investigações Sociais
CERIS Promocat
Centro de Pesquisas e Anuário Católico
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