No entanto, foi neste mesmo momento que surgiram as comunidades eclesiais de base, vinculadas à Igreja Católica, como espaços iniciais de resistência ao regime, após a derrota das organizações de esquerda que haviam optado pela luta armada. As comunidades e grupos leigos que surgiram, em todo o país, abrigados em espaços de paróquias e dioceses, eram muito autônomos com relação à hierarquia eclesial e tinham uma ênfase na práxis social.
Nas cidades, eram grupos de moradores de favelas e bairros de periferia, que refletiam sobre as condições de vida e buscavam organizar ações reivindicatórias, em transporte, saúde, escolas, creches, urbanização etc; eram também grupos de operários no interior das fábricas, que refletiam sobre as condições de trabalho, salário, direitos trabalhistas e encaminhavam também ações reivindicatórias através de abaixo-assinados ou “operações-tartaruga”.
No meio rural, eram famílias de camponeses que se organizavam para não serem expulsas da terra pelo latifundiário; grupos camponeses que organizam roças comunitárias; posseiros que lutavam para permanecer em suas terras; trabalhadores assalariados que lutavam por melhores salários; povos indígenas que realizavam assembléias, expulsavam invasores e exigiam a demarcação de seus territórios etc
Ao longo dos anos 70 e princípios dos 80 estes grupos locais foram se articulando, em âmbito regional e nacional, constituindo os movimentos sociais com pautas de reivindicações de caráter amplo e nacional. As grandes greves metalúrgicas deste período, principalmente na região mais industrializada, do sudeste e sul do país, aceleraram o fim da ditadura militar, consumado em janeiro de 1985.
À diferença de outros países da América Latina, os militares brasileiros optaram por uma “saída organizada” da cena política, ao mesmo tempo em que, com a chamada Lei de Anistia, de 1979, buscaram se preservar de qualquer investigação dos crimes cometidos durante aquele período.
O fim da ditadura colocou para a sociedade brasileira o desafio da construção de uma nova institucionalidade, o que foi feito com a convocação do Congresso Constituinte, de 1986 a 1988, que teve como tarefa a elaboração e aprovação da nova Constituição Federal.
O processo constituinte ocorreu com intensa participação dos setores organizados da sociedade brasileira, entre os quais aqueles movimentos sociais, urbanos e rurais, que nasceram, cresceram e se desenvolveram ao longo dos anos anteriores. Tais movimentos trouxeram para o Congresso Constituinte suas agendas, reivindicações e propostas de artigos para a nova Constituição, tendo realizado permanente mobilização, pressão e discussão com os deputados e senadores no sentido de garantir a inclusão de seus direitos no novo texto constitucional.
As mobilizações reuniam sempre milhares de manifestantes, que entravam no Congresso Nacional e davam a tônica das audiências públicas. As entidades populares fizeram circular inúmeros abaixo-assinados em todo o país, propondo a inclusão de direitos constitucionais e reuniam, não raro, alguns milhões de assinaturas.
Desta maneira, num contexto internacional de avanço da perspectiva neoliberal, durante a segunda metade dos anos 80, era aprovada a nova Constituição brasileira, marcada pelo reconhecimento de direitos civis, sociais, econômicos e culturais; pela participação popular e pela perspectiva de controle social sobre o Estado.
A crise do socialismo e a hegemonia do pensamento único
A queda do Muro de Berlin, em 1989, o fim do assim chamado “socialismo real”, a crise no plano político e ideológico do movimento operário e da esquerda em geral, por um lado; a revolução tecnológica, a informatização acelerada dos ambientes de trabalho, os novos processos integrados de produção, então internacionalizados, por outro lado, criaram uma situação de impacto negativo e profundo na vitalidade organizativa e mobilizadora dos movimentos sociais e sindicais brasileiros.
Durante os princípios dos anos 90, na medida em que o “pensamento único” neoliberal se impunha, o desemprego se alastrava e a exclusão social aumentava, os movimentos sociais entraram numa fase defensiva.
A desertificação do pensamento crítico e da contestação social se desenvolveram, mas também encontraram limites no seu caminho: as raízes organizativas, já sólidas e respaldadas pela nova Constituição, permitiram aos movimentos sociais reagir a este processo socialmente corrosivo e, inclusive, buscar novas estratégias de luta.
Num primeiro momento tivemos como referência as iniciativas do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – que retomaram as ocupações massivas de terra em todo o país, as marchas locais, regionais e nacionais, exigindo direitos, denunciando a concentração da terra e a desigualdade social; depois tivemos o surgimento de novos movimentos sociais, urbanos e rurais, como dos pequenos agricultores, das populações tradicionais, dos sem-teto urbanos, das mulheres, dos grupos LGBT, dos grupos culturais das periferias das grandes cidades etc
Tais iniciativas foram constituindo uma nova configuração dos movimentos sociais brasileiros, agora centrados na busca da reconstrução do pensamento crítico, da construção de alianças políticas entre classes populares e setores de classe; na elaboração de novas estratégias políticas; na retomada do debate acerca de um projeto político nacional, de caráter democrático e popular.
Neste momento voltam à cena os grupos de base de origem católica e ecumênica, agora organizados como “pastorais sociais” e “entidades ecumênicas”, que se articularam com estes novos movimentos sociais, na busca comum por uma perspectiva transformadora da sociedade brasileira. Esta perspectiva levava em consideração a “globalização excludente” em curso e buscava construir, como alternativa, uma “globalização solidária”, que denunciasse a exclusão social em escala nacional e internacional e buscasse a ruptura com o modelo econômico, social, político e ideológico hegemônico.
É importante, aqui, ressaltar a importância do pensamento do geógrafo brasileiro Milton Santos para estes novos movimentos e articulações sociais no Brasil, particularmente suas análises a respeito da globalização perversa em curso; dos processos de mercantilização da vida; de controle do Estado pelas grandes corporações; da anulação da política pelo capital e, em especial, sua contribuição à reflexão sobre a territorialidade das lutas sociais.
Esta nova articulação de movimentos sociais no Brasil produziu grandes processos de uma ampla e diversificada participação popular, entre estes a realização de dois plebiscitos, totalmente autônomos e organizados pelos setores populares: o Plebiscito da Dívida Externa (2000) e o Plebiscito da ALCA - Área de Livre Comércio das Américas (2002).
Este último, articulado com outras iniciativas populares do continente americano, mobilizou cerca de 150.000 militantes sociais em todo o país e conseguiu a participação, como votantes, de mais de 10 milhões de pessoas, tendo sido um elemento importante para a derrota da proposta norte-americana, de criação de uma área de livre-comércio nas Américas.
O Governo Lula
O Governo Lula é, em grande parte, resultado desta história de avanços e recuos, de força e debilidade dos movimentos sociais e sindicais brasileiros. A aliança partidária que chegou ao governo federal em 2002-2006 e em 2007-2010, foi vitoriosa devido a uma ampla mobilização popular, desencadeada a partir da frustração da sociedade com o discurso e as práticas neoliberais do período anterior e com expectativas positivas na direção de um novo padrão de desenvolvimento, com políticas públicas inclusivas, com o reconhecimento de direitos sociais e com maior presença do Estado na vida econômica e social.
Durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as bases do modelo econômico hegemônico foram mantidas, embora redirecionadas numa perspectiva de inclusão social. Foi, ao mesmo tempo, desenvolvida uma noção de “governabilidade política” que, buscando fidelidade com os compromissos de mudança, passava pela ênfase na estabilidade político-institucional, preservando alianças partidárias que iam em direção ao centro do espectro político.
Se o Governo Lula manteve, ao longo de seus dois mandatos, o que podemos chamar de uma “governabilidade conservadora”, preocupada centralmente com a estabilidade econômica e política, assim como com o funcionamento das instituições republicanas, por outro lado, realizou uma abertura de espaços políticos no Estado para a participação e experimentação social.
Aqui ocorreram movimentos de contestação e ruptura, por parte de setores mais à esquerda, que exigiam uma radicalização no que diz respeito à negação do modelo econômico, assim como iniciativas críticas por parte de movimentos sociais que propunham a adoção, pelo centro de governo, de um conceito de “governabilidade social” como elemento fundamental da estratégia e da aliança política.
Ou seja, se reivindicava que o governo Lula se respaldasse politicamente mais nas alianças com os setores populares e sindicais mobilizados, acelerando as transformações sociais, e menos nas alianças e negociações com os setores de centro e direita da vida institucional.
Criticou-se a excessiva lentidão, por parte do governo, nos processos de implementação dos compromissos de campanha, firmados com relação à agenda proposta pelos movimentos sociais.
Apesar desta crítica severa, a militância partidária e social, que cresceu e se desenvolveu ao longo das últimas décadas, penetrou na administração pública, ocupando estruturas de governo e estruturas do Estado brasileiro e, a partir destes lugares, implementou uma diversidade enorme de experiências sociais, culturais e políticas, inspiradas nas vivências e propostas dos movimentos sociais.
Tais vivências e propostas tinham sua origem nos movimentos de trabalhadores e organizações populares de base, sindicais, de camponeses sem terra, de mulheres e gênero, da juventude, dos estudantes, dos povos indígenas, de atingidos por barragem, de pequenos agricultores, de grupos de direitos humanos, de grupos culturais das periferias urbanas, das lutas pela democratização da comunicação, da luta anti-manicomial, das lutas de pescadores e ribeirinhos, de populações tradicionais, de quilombolas, do movimento negro, de seringueiros, de ambientalistas, de grupos LGBT, de portadores de necessidades especiais, de grupos de terceira idade, de sem teto urbanos, de catadores de papel, de portadores de hanseníase etc
Ao longo dos dois mandatos do presidente Lula (2003-2010) foram realizadas centenas de conferências temáticas, locais, municipais, estaduais e nacionais, que reuniram milhões de pessoas em todo o país, abarcando praticamente toda a diversidade social, ao final das quais foram definidas propostas de políticas públicas, encaminhadas ao Governo Federal e propostas legislativas, encaminhadas ao Congresso Nacional.
Tais propostas se tornaram verdadeiros referenciais para a continuidade das lutas dos movimentos sociais, assim como para a continuidade do controle social sobre o Estado, exercido pelos setores populares organizados.
No interior dos diversos ministérios foram instituídos espaços e mecanismos de interlocução com populações locais, no sentido de se promover políticas públicas com a participação ativa dos grupos sociais organizados; assim como foram instituídos canais de diálogo permanente com movimentos sociais regionais e nacionais, na busca de se construir políticas públicas específicas e democratizantes, baseadas no acúmulo histórico e na legitimidade política de tais movimentos.
O próprio centro do Governo Lula, através da sua Secretaria Geral e do Gabinete Pessoal do Presidente da República, mantiveram espaços permanentes de diálogo com representantes da sociedade civil organizada, numa perspectiva de escuta de suas avaliações acerca das políticas de governo, assim como de suas críticas e sugestões para as políticas públicas.
Esta experiência tem mostrado o quanto ainda é necessário fazer para que o que está escrito na própria Constituição brasileira venha a se tornar realidade, em termos da universalização de direitos econômicos, sociais, políticos, culturais, territoriais etc
É extremamente desafiador se democratizar, de fato, o Estado brasileiro, que foi forjado, ao longo de 510 anos, com base na mais absoluta desigualdade social, na autocracia, na exclusão social, nos preconceitos e nos privilégios das oligarquias e minorias dominantes.
Podemos afirmar, no entanto, que as ricas experimentações, em termos de políticas públicas, realizadas pelo Governo Lula, com base nas agendas históricas dos movimentos sociais e na participação ativa dos setores populares organizados, é o que conforma, com maior nitidez, seu legado político como de caráter democrático e popular.
Um fator, no entanto, é fundamental para a realização e para a continuidade de todo este processo: a completa autonomia das organizações populares frente ao governo e frente ao Estado brasileiro.
O futuro: desafios para o agir e o pensar transformadores
Para se pensar o futuro da sociedade brasileira como um aprofundamento das transformações políticas em curso, em busca de uma sociedade sustentável, justa e democrática, só podemos fazê-lo dentro dos marcos de um intenso protagonismo político dos setores populares.
Não é possível se agir nem pensar, em termos de continuidade das mudanças sociais, que necessitam se enraizar e multiplicar, sem a participação ativa da sociedade como o ator central deste processo.
Para tanto, os movimentos sociais precisam preservar sua autonomia frente ao governo e frente ao Estado, para poderem exercer, em total liberdade, a sua crítica legítima, assim como a sua contribuição valiosa, em experiências originais, de parcerias concretas nas políticas públicas.
É necessário se intensificar a experimentação popular nos municípios, estados e regiões, ao mesmo tempo em que se deve refletir sobre seus resultados, do ponto de vista do conjunto dos direitos humanos, sociais, civis, culturais, econômicos, assim como do ponto de vista dos direitos da natureza.
Ao mesmo tempo em que se potencializa esta criatividade popular, é importante se desdobrar o diálogo do Estado com o conjunto da sociedade brasileira, para que não sejam realizadas apenas experiências políticas isoladas, mas que tais experiências possam ser conhecidas, avaliadas e multiplicadas, numa perspectiva de fortalecimento do controle social.
Com relação à experiência brasileira, podemos afirmar que necessitamos construir uma “governabilidade social”, baseada na democratização dos espaços de controle da sociedade sobre todas as políticas públicas, desde o bairro, o município, o estado, o país.
É importante se desenvolver também a noção de “territorialidade”, como espaço comum de memória do passado, de vivência do presente e de construção coletiva do futuro. O território é o espaço, por excelência, da comunidade humana, para o exercício de direitos por parte das atuais e das futuras gerações.
A partir desta “governabilidade social” e desta “territorialidade” faz-se necessário repensar as instituições políticas, econômicas, sociais e culturais e as suas relações com a sociedade local.
É necessário se repensar o Estado à luz do protagonismo de cada comunidade concreta, em pleno exercício de seus direitos civis e territoriais. Neste sentido, é necessário se recriar radicalmente as instituições públicas, como espaços de serviço e de controle da população e não como espaços de controle sobre a população.
O Brasil tem o grande desafio de repensar o poder e a forma de articular nossas mídias, a imprensa, rádios, incluindo as rádios comunitárias, e as tvs tradicionais, assim como as novas mídias , da internet, dos blogs, sites, portais e twitters.
Atualmente, as mídias tradicionais atuam como imensas estruturas verticais de controle social e hegemonia ideológica, enquanto as novas mídias significam espaços horizontais novos de liberdade, sob o controle de pessoas e comunidades livres.
É também um forte desafio para a nossa construção democrática a elaboração de um novo desenho das estruturas de comunicação no país e, principalmente, a definição de como será exercido o controle dos fluxos e conteúdos desta comunicação.
A história política recente do povo brasileiro nos mostrou que é possível se vivenciar um novo paradigma político, na medida mesma em que o construímos e avaliamos. A elaboração teórica permanente sobre o vivido nos dá a possibilidade de correções, tanto do nosso projeto utópico, como da nossa práxis cotidiana.
O fundamental é termos a convicção de que, se desejamos construir um novo caminho, este só poderá ser alcançado com o envolvimento de toda a sociedade e com o protagonismo central dos movimentos sociais, ampla e massivamente organizados.
Paulo Maldos
Brasília - Brasil
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