A onda de movimentos populares antiditatoriais, iniciada no Irã há 32 anos, reaparece de forma inesperada – como em 1979 – em uma região que o Ocidente tentou manter, até agora com êxito, à margem de qualquer contágio democrático. Washington, Tel Aviv e Riad movem agitadamente seus peões para evitar que o Egito se “extravie” ou, pior, se “perca”, como ocorreu com o Irã em 1979. Está certa a cadeia de televisão Al Jazeera ao qualificar o que está ocorrendo como “a batalha pelo Egito”. Nada poderia ser pior para certas potências estrangeiras que um renascimento do nacionalismo árabe e do espírito antiisraelense egípcio. O artigo é de Augusto Zamora.
Augusto Zamora R. - Rebelión
No dia 1° de fevereiro de 1979, após meses de revoltas populares reprimidas brutalmente, o aiatolá Ruhollah Khomeini regressou ao Irã. Sua chegada assinalava a derrocada do regime ditatorial e pró-ocidental da família Pahlevi, instaurado no país após o golpe de Estado organizado pela CIA contra o governo nacionalista de de Mossadeq. No dia 1° de abril, depois de um referendum, Khomeini proclamava a República Islâmica do Irã, de caráter antiestadunidense. Poucos meses depois, em 19 de julho do mesmo ano de 1979, outra revolução popular, esta encabeçada por guerrilheiros sandinistas, derrubava a ditadura mais antiga da América, imposta também pelos EUA em 1934.
Na contramão das análises de seus serviços secretos e oficiais políticos, Washington contemplava impotente a derrubada de dois de seus regimes gendarmes, em regiões consideradas de vital importância: Golfo Pérsico e América Central. A “perda” do Irã rompia o cerco estratégico em torno da região do petróleo, formado por Turquia, ao norte, Israel, no centro, Arábia Saudita, no sul, e Irã, a oeste.
A reação não tardou. O temor de que o exemplo iraniano se estendesse por toda a região foi neutralizado com uma guerra de agressão. O regime de Sadam Hussein, armado até os dentes pelos EUA e Europa Ocidental e financiado pelas petromonarquias do Golfo, invadiu o Irã em setembro de 1980. Saddam era, então, o aliado do Ocidente dos regimes reacionários árabes. O objetivo da agressão bélica era destruir a república islâmica. Isso não ocorreu. Os oito anos de guerra fortaleceram a República Islâmica e assentaram as bases para que Sadam quisesse cobrar o inútil sacrifício do Iraque, anexando o Kuwait. A guerra fracassou, mas o “efeito islâmico” foi, efetivamente, neutralizado por décadas. Os EUA, por sua vez, fez do Egito o gendarme substituto do Irá e de Mubarak o novo Xá.
Na Nicarágua, os EUA organizaram um movimento contrarrevolucionário baseado na Costa Rica e Honduras, iniciando uma guerra criminosa – condenada pela Corte Internacional de Justiça, em 1986 – que acabou determinando o fracasso da Revolução Sandinista.
Não obstante, Washington tirou uma lição daquelas duas revoluções: entendeu que as ditaduras militares já não garantiam o controle de países chave. Podiam provocar o oposto, ou seja, servir de elemento aglutinador e mobilizador contra essas tiranias.
Iniciou-se, assim, uma nova política na América Latina, cujo núcleo central era a substituição das ditaduras militares por democracias controladas (pelos EUA). Ditadores e ditaduras foram caindo sem pressa, mas sem interrupção, na Argentina (1982), Chile e Paraguai (1989, onde o ditador Stroessner foi derrubado por seu genro), passando pelo Brasil (1985). No repique, acabou caindo também a ditadura de Ferdinand Marcos, nas Filipinas, em 1986, substituído por Cory Aquino, viúva do assassinado líder Benigno Aquino (fórmula seguida na Nicarágua, em 1990, contra o sandinismo, transformando em candidata a viúva do assassinado Pedro Joaquín Chamorro).
Estes acontecimentos vêm à tona porque a onda de movimentos populares antiditatoriais, iniciada no Irã há 32 anos, reaparece de forma inesperada – como em 1979 – em uma região que o Ocidente tentou manter, até agora com êxito, à margem de qualquer contágio democrático. Enquanto na América Latina se derrubavam as ditaduras, dando lugar a poderosos movimentos de mudança e ao ressurgimento da esquerda, no mundo árabe ocorria o contrário. Na Argélia, a vitória democrática da Frente islâmica de Salvação (FIS), em 1992, foi abortada por um golpe de Estado e uma sangrenta guerra civil, com 200 mil mortos. O triunfo legal e legítimo do Hamas, em Gaza, em 2006, foi respondido com um bloqueio imoral, seguido da criminosa agressão israelense de 2008.
Os tempos mudaram e, sem Guerra Fria, ninguém pode justificar golpes de estado ou invasões estrangeiras para sufocar com sangue revoltas populares, como a triunfante na Tunísia ou a que está em marcha no Egito e que começa a se espalhar por outros países.
Mas o Egito não é a Tunísia. País gendarme na região mais volátil do planeta e contraponto muçulmano ao crescente poder e influência do Irã, o Egito é a peça mais estratégica da região, depois de Israel. Por isso, o levante popular egípcio não seguirá a rota relativamente fácil do tunisiano. Por trás das massas rebeladas, Washington, Tel Aviv e Riad movem agitadamente seus peões para evitar que o Egito se “extravie” ou, pior, se “perca”, como ocorreu com o Irã em 1979. Está certa, portanto, a cadeia de televisão Al Jazeera ao qualificar o que está ocorrendo como “a batalha pelo Egito”.
O retorno de Mohamed Al Baradei foi uma jogada dirigida com o objetivo de ter disponível um eventual substituto moderado (um “Cory Aquino” egípcio), caso se torne urgente a saída de Mubarak, como ocorreu nas Filipinas, em 1986, ou no Paraguai, em 1989. Al Baradei reúne bons requisitos para sucedê-lo. É moderado, respeitado, de direita, próximo ao Ocidente. Um personagem gatopardiano, que mudaria tudo sem mudar nada, sobretudo o papel de policial desempenhado pelo Egito na região.
Nada poderia ser pior para certas potências estrangeiras que um renascimento do nacionalismo árabe e do espírito antiisraelense egípcio, em cujo sepultamento Mubarak teve um papel essencial.
O estabelecimento de sistemas verdadeiramente democráticos, por mais que se fale deles, tira o sono de várias potências ocidentais, porque, parafraseando a frase de Kissinger sobre o Chile, em 1973, os povos tendem demasiadas vezes a atuar irresponsavelmente, elegendo personagens duvidosos (como Allende). O caso da FIS, na Argélia, e o êxito do Hamas, em Gaza, demonstram que, deixados ao seu livre arbítrio, os povos podem votar perigosamente. Olhem a América Latina, que, após uma onda de sucessivas revoltas populares nos anos 90, se cobriu de um encantador – e incômodo – tom vermelho-rosado democrático, com povos que são, afinal, donos de seus países.
(*) Autor de Ensayo sobre el subdesarrollo: Latinoamérica, 200 años después.
(**) Rebelión publicou este artigo com a permissão do autor mediante uma licença de Creative Commons, respeitando sua liberdade para publicá-lo em outras fontes.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior
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