sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A via do conhecimento de Deus - José Comblin



No decorrer do século XX a teologia cristã abandonou decididamente o caminho da metafísica para conhecer Deus. Durante séculos, a escolástica – nos seus vários episódios, inclusive nas teologias protestantes –, falou de Deus em termos de “essência” ou “substância”, procurando explicar o que Deus é. Para esse fim, partiu de todas as perfeições que existem no mundo, atribuindo-as a Deus de modo eminente. Dessa maneira Deus era “todo-poderoso”, “onisciente”, “imutável”, ”auto-suficiente”, e assim por diante. Seguindo a metafísica, a teologia chegava a Deus pela aplicação dos conceitos de causa e efeito. Constatou-se, por fim – depois de tantas “neo-escolásticas” e “neotomismos” –, que este caminho já não era mais viável no estado atual das ciências e da evolução do pensamento humano.

Hoje em dia ficou mais claro para todos que há dois caminhos fundamentais de conhecimento. Por um lado há o caminho “científico”: conhecimento que une a indução e a dedução. Trata-se de conhecimento analítico: divide o campo da observação em fenômenos separados e distintos para estudar as relações entre vários fenômenos. Dessa maneira isola elementos e depois estuda analiticamente o complexo de relações entre essas unidades. Uma vez acumuladas as observações, a ciência elabora modelos ou hipóteses das quais se podem deduzir as relações entre os modelos considerados. Em seguida, novas observações e novos experimentos confirmam ou contradizem o modelo construído. Se as contradições se multiplicam, elas tornam inviável a hipótese de partida e o cientista elabora outra hipótese e assim sem sim. Este conhecimento permite de fato a elaboração de técnicas capazes de conseguir mudanças no mundo material ou mental. Afinal, o conhecimento científico vale pelos efeitos que consegue produzir. As mudanças efetuadas podem ser úteis à vida dos seres humanos. São as que merecem mais atenção.

Esse método de conhecimento é tão antigo como a humanidade: sempre foi aplicado pelos artesãos, construtores, agricultores. Porém, no passado todas essas profissões eram desprezadas e não mereciam muita atenção.

Os filósofos gregos tiveram a intuição de que esse método rigoroso de pensamento era também aplicável à totalidade do universo e de que era possível elaborar uma teoria geral do universo feita de conceitos e de relações entre conceitos. A partir de uma intuição direta das idéias que seriam o modelo da construção do universo (Platão), ou a partir da observação (Aristóteles) e da abstração, era possível elaborar um sistema de conceitos representativos da totalidade: a metafísica. Os gregos pensaram que pelo caminho da metafísica se poderia chegar a Deus: Deus ocupava um lugar dentro da construção conceitual do mundo. Achavam que se podia demonstrar a existência de Deus pelo caminho que permite definir as relações dentro do universo. Na Idade Média esse método foi adotado e tornou-se comum na Igreja católica. As próprias Igrejas protestantes, que quiseram emancipar-se dessa teologia, voltaram a integrá-la sub-repticiamente quase até o século XX. Deus aparecia assim racional, científico, demonstrado, indiscutível.

No entanto, desde o século XVI o movimento científico afastou-se cada vez mais da escolástica. As novas observações e os novos experimentos entravam em contradição com os conceitos escolásticos. Os gregos achavam que suas teorias tinham valor absoluto e eram verdades eternas. Não tinham descoberto a lei do pensamento científico de que nenhuma teoria é definitiva, que novos descobrimentos obrigam a substituir as teorias superadas por outras mais abrangentes. Os teólogos não queriam mudar as suas teorias e os cientistas não podiam aceitá-las. Começou um conflito que somente terminou neste século XX.

O método científico não entra em contradição radical com a indução e dedução da lógica medieval – simplesmente aplica-as com mais rigor. Ora, o que aconteceu com o conhecimento de Deus?

Durante muito tempo os cientistas continuaram achando que o método de pensamento racional levava ao conhecimento de Deus. Até Newton todos pensavam assim, e o próprio Newton – que era muito religioso e muito conservador – procurava na nova física argumentos para confirmar a existência de Deus. Foi somente a partir da Revolução Francesa que os cientistas começaram a proclamar que não somente a ciência não dava demonstração da existência de Deus, mas – pelo contrário – mostrava que Deus era inútil. É conhecida a famosa resposta do astrônomo Laplace ao imperador Napoleão, que lhe perguntava qual era o lugar de Deus na sua física. Resposta de Laplace: “Na minha física não preciso de Deus”.

Curiosamente, nem todos os cientistas adotaram essa conclusão. Como se sabe, mais ou menos a metade dos cientistas de hoje crêem em Deus, no Deus monoteísta tradicional, porém em muitos casos por outros motivos, e não por motivos científicos. No entanto, há também hoje em dia um renascimento da aceitação da existência de Deus a partir de argumentos científicos.

É conhecida a desconfiança de Einstein quando lhe deram a conhecer a teoria do big-bang, teoria que explica a origem do universo a partir da explosão de uma partícula primitiva de pura energia, teoria expressada por um sacerdote belga, professor da Universidade de Lovaina. Einstein desconfiava e pensava que se tratava de uma astúcia clerical para voltar à idéia de Deus a partir da ciência. Ele, que era ateu convicto, demorou antes de aceitar o caráter científico da nova teoria. Ora, de fato hoje em dia vários físicos acham que poderia haver na teoria do big-bang um argumento forte a favor da existência de um Deus criador, autor do átomo primitivo. O mais famoso, recuperado há alguns anos por Juan Luís Segundo, é o professor Trinh Xuan Tuan, vietnamita radicado nos Estados Unidos.

Entre os argumentos metafísicos da Idade Média e os argumentos físicos de hoje há continuidade. Em ambos os casos, pensa-se que se possa chegar a Deus por meio da lógica, usando conceitos tirados da experiência e estabelecendo relações lógicas entre conceitos. Deus seria o ponto culminante da teoria representativa do universo. Porém, por este caminho não se sai do universo. O Deus de Aristóteles era o fornecedor de energia ao mundo inteiro, era o ponto de partida de todos os movimentos. Por conseguinte, era membro e parte do universo. Daí a dificuldade que sempre houve: como conciliar esse Deus com o Deus da Bíblia? O Deus da Bíblia foi, pouco a pouco, recoberto pelo Deus da metafísica.

O que os gregos não tinham pensado – e o que não entrou na escolástica, nem no pensamento científico derivado da escolástica – é que existe outro caminho de conhecimento. Há um conhecimento não analítico, não conceitual, não lógico, que não se presta a teorias: é o conhecimento da vida. Também este é tão antigo quanto a humanidade. Todos os seres humanos conhecem a vida porque vivem. Têm conhecimento direto, imediato, não transmissível porque ninguém conhece outra vida, conhece a sua – e as outras somente por meio de analogias. Este conhecimento não foi valorizado. Não chegou ao status de “filosofia”, e, por conseguinte, não chegou a ser “teologia”, à medida que se deu o nome de teologia ao discurso que usa a filosofia.

O conhecimento da vida é sintético porque a vida não é divisível, é um ato inseparável. Por isso não se demonstra a vida. Nem se demonstra a liberdade. Conhece-se tanto a vida quanto a liberdade porque se vive.

O conhecimento da vida expressa-se por meio de metáforas, parábolas, contos, mitos. Procede de modo narrativo. Não serviria para conseguir os efeitos que se busca pelo conhecimento científico. Porém, para viver bem, muito pouco se consegue pelo caminho analítico. Somente o conhecimento da vida tem utilidade.

Por isso as elucubrações dos cientistas sobre Deus podem ser interessante, mas contribuem muito pouco para conhecer a Deus – o Deus cristão, o Deus de Israel e da Bíblia. E todos os discursos metafísicos ou científicos contribuem pouco, antes desviam a atenção do que é realmente relevante. O discurso da Bíblia pertence à linha de pensamente vital, sintético, e por isso o seu discurso é narrativo. Não diz o que Deus é, mas narra o que Deus faz. Por sinal, a língua hebraica ignora o verbo “ser”. Não havia necessidade de dizer o que uma realidade era. Bastava dizer o que fazia ou o que acontecia com ela.

José Comblin – Vocação para a liberdade

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