Missão em debate
A concepção da vida cristã dominou durante séculos a teologia escolástica medieval e a maior parte da teologia católica é analisada criticamente por Danilo Castello, padre comboniano, professor de Teologia dogmática no Seminário Comboniano de Venegono Superiore, na Província lombarda de Varese, perto de Milão. Ele foi também missionário na Uganda durante vários anos e trabalha atualmente na animação missionária na Inglaterra.
Eis o artigo.
Se, como diz Bento XVI, «no início do ser cristão não há uma decisão ética» (Deus caritas est), mas sim um "encontro com a pessoa de Cristo" que floresce na amizade e no seguimento, então talvez não tenha sentido uma missão que se alavanca em legalismo e moralismo exclusivista.
A ideia de que missão significa salvar as almas e estender a Igreja sempre gozou – e continua a gozar ainda hoje –, se não de uma total aprovação, pelo menos de uma relativa tolerância por parte de muitos. Esta visão teológica afunda as suas raízes históricas numa província do Império Romano: o Norte de África. Aqui nasceu um cristianismo de fisionomia coriácea e exclusivista. Cartagena foi a pátria de Tertuliano, provavelmente um homem de leis, um dos mais influentes pensadores cristãos de todos os tempos, ao qual pode ser atribuída a origem deste poderoso tipo de teologia. As suas obras, pensadas com mentalidade jurídica, representam uma radical romanização da mensagem cristã.
As características desta teologia encontram-se num termo: direito, o grande dom de Roma ao Ocidente. Nos escritos de Tertuliano, Deus é descrito como legislador e juiz. Sob a influência desta teologia, o «dia da vinda do Senhor», suspirado pelos primeiros cristãos na sua invocação litúrgica em língua aramaica, «Maràna tha» (Senhor, vem!), transforma-se no Dia do Juízo. Na Idade Média, esta visão encontrará o seu hino correspondente no Dies irae, dies illa (Dia de ira aquele dia), que durante séculos ressoou nas igrejas cristãs.
Clima de resignação, mais do que alegre expectativa. Os mais idosos de entre nós cresceram nesta mentalidade de medo, no temor de ser «apanhados em falta» pelo olhar de Deus, que tudo vê e tudo sonda, pronto a castigar onde há culpa. Jesus é representado como o «novo Moisés» e o Evangelho como a «nova lei».
Esta concepção da vida cristã dominou durante séculos a teologia escolástica medieval e a maior parte da teologia católica. Desde os tempos do imperador Constantino até finais do século XIX, a Igreja, apesar das muitas reformas e das muitas mudanças na sociedade, assumiu uma característica bem definida. Muitas das pretensões da Igreja tiveram a sua origem no facto de o Cristianismo se ter tornado religião de Estado; depois de Constantino, a legislação de Teodósio e Justiniano consolidou o substituir-se da igreja ao Império Romano na sociedade.
Cristo "pagou"
No seio desta orientação teológica não há lugar para a pergunta que inquieta alguns setores da teologia contemporânea da missão, ou seja, se e até que ponto a pessoa e a obra de Jesus sejam o único modo com que Deus oferece a salvação. Relativamente à pessoa de Jesus, a tendência é focalizar a atenção na sua realidade de "Filho eterno", mais do que no significado do Jesus histórico e na relevância da sua vida e da sua mensagem. As implicações para a missão são de vasto alcance.
A obra salvífica de Jesus é pensada em termos legalistas. Tertuliano introduziu a palavra "satisfação", que no direito romano significava "reparação de um mal cometido" por não ter mantido uma obrigação, ou até mesmo dar ou receber um castigo. Mas foi Anselmo de Cantuária a desenvolver esta doutrina de forma que, na expressão teológica seguinte, alcançaria um estatuto quase normativo. Para Anselmo, que fazia teologia no contexto do direito alemão tradicional, a morte de Jesus na cruz "satisfaz" Deus pela ofensa infinita cometida com a desobediência de Adão. A redenção foi conseguida – dizia São Bernardo de Claraval – mediante o sangue e não mediante a palavra de Jesus. Nem sequer a ressurreição é tão importante como este momento de satisfação e de vitória sobre o demônio.
Esta redenção "objetiva" foi realizada de uma vez para sempre na cruz. A redenção "subjectiva", pelo contrário, é tarefa de cada indivíduo e só pode ter lugar mediante o esforço de imitar a vida de Cristo.
No debate cristológico atual, que tem lugar no contexto do pluralismo das religiões mundiais, distinguem-se comummente três posições: uma cristologia exclusiva, que confessa Jesus como único salvador; uma cristologia inclusiva, que concebe a graça de Deus em Cristo como implicitamente presente noutras vias religiosas; e uma cristologia pluralista, que reconhece em Jesus "uma" das muitas vias de salvação.
Evidentemente, uma escola teológica dominada por um forte juridismo sente-se mais à vontade com a posição exclusivista. Embora na Igreja sempre tenha existido uma vigorosa tradição que prefere adoptar uma mais moderada cristologia inclusiva, sempre houve também uma forte tradição segundo a qual, sem a fé explícita em Cristo, não há esperança de salvação.
Fora da igreja
A Igreja é o único agente – ou a "via ordinária" – da fé em Cristo. A afirmação atribuída a Cipriano – "Extra ecclesia nulla salus" – deve ser entendida em sentido inteiramente literal. Na forma mais extrema em que a expressou Bonifácio VIII, a salvação só é possível àqueles que se submetem à autoridade do papa. A dureza desta afirmação foi atenuada, a até negada, em documentos romanos sucessivos. No Vaticano II a frase não foi sequer usada. Apesar disso, na encíclica Redemptoris missio (A missão do Redentor) de 1991, João Paulo II adverte que "o diálogo deve ser conduzido e praticado com a convicção de que a Igreja é a via ordinária de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios de salvação" (RM 55).
Um outro traço da eclesiologia deste tipo de teologia – que aqui é preciso citar – é a relação da Igreja com o Reino de Deus. Para o modelo institucional, a Igreja identifica-se fundamentalmente com o Reino. Durante o seu ministério terreno Jesus anunciou, serviu e testemunhou o Reino de Deus, mas este encontrou o seu cumprimento na instituição da Igreja. Portanto, a plenitude da salvação oferecida por Deus só encontra dentro das fronteiras da Igreja. Aquilo que a Igreja espera no fim dos tempos é o completo estabelecimento de si mesma em todos os lugares e a conversão de todos os povos às suas fileiras. E aqui tocamos a terceira constante da missão: a escatologia.
Juízo de Deus
Os cristãos medievais, em especial, estavam muito preocupados com as questões escatológicas relativas à morte, ao juízo, ao Paraíso, ao Inferno e ao Purgatório, e é à sua brilhante imaginação, expressa na sua melhor forma na poesia e na teologia tardo-medieval de Dante, que devemos muitas das nossas imagens e grande parte da linguagem doutrinal atual. Referimo-nos ao grande terrificante poema, usado até à reforma litúrgica católica da década de 1960, representado pela sequência da missa pelos defuntos. Os cristãos foram fortemente motivados pelas doutrinas da escatologia individual. Embora os missionários não fossem motivados pela severa crença do Dies irae, certamente eram impelidos pela ideia de pessoas inocentes, e todavia "ignorantes", que ardiam no Inferno só porque alguém não tinha partilhado com eles a mensagem de Jesus.
A forma mentis desta teologia, impregnada de moralismo, vê os seres humanos como enredados no pecado, e portanto, se deixados a si próprios, destinados à condenação eterna. É mediante a obra expiatória, redentora de Cristo, só participável na Igreja, que as pessoas são "libertadas" e colocadas em condições de viver nos modos que garantam a vida eterna. A salvação é qualquer coisa que se adquire para além da morte e fora deste mundo. Por outras palavras, não há nenhuma percepção de que a salvação, enquanto tal, inclua uma renovação estrutural política e cósmica.
Que antropologia?
Se a concepção da salvação é fundamental para o modo de fazer missão, também a concepção da natureza da humanidade é determinante nas suas implicações. Aludo apenas às implicações que derivam para a missão de um instinto teológico que tem como base antropológica o ordenamento hierárquico dos seres humanos, inspirado na estrutura jurídica da sociedade romana. Quando os horizontes do mundo se alargaram, esta concepção hierárquica passou nas atitudes de superioridade do mundo ocidental face aos outros povos. Quando os missionários, permeados desta teologia, iam anunciar o Evangelho, levavam consigo o sentimento da sua superioridade e uma atitude paternalista em relação àqueles a quem eram enviados. Esta difusa e inconsciente atitude paternalista e de superioridade mortificou e reprimiu enormemente o desenvolvimento e a difusão do Evangelho.
De um ponto de vista cultural, esta orientação teológica levava os missionários, excetuando significativas exceções (as disposições do Papa Gregório Magno para os anglo-saxónicos, a declaração de Propaganda Fide de 1659, os exemplos de De Nobili e Valignano na Índia e de Mateus Ricci na China), a adotar a abordagem da tábua rasa: a cultura local devia ser posta de parte.
Três insídias
Esta forma mentis, imbuída de filosofia estóica e de categorias jurídicas romanas, que no arco de dois milénios de Cristianismo forneceram a milhões de cristãos a motivação para suportar privações incríveis e arriscar a própria vida para que o mundo pudesse acreditar e ser salvo, esconde no seu seio três insidiosas atitudes.
* O Legalismo – A espiritualidade que anima esta corrente teológica é dominada por uma excessiva atenção à observância exterior, com todas as consequências que daí possam derivar. Bento XVI no Jesus de Nazaré não hesita em qualificar este cristianismo como "de fachada".
* O Voluntarismo, ou seja, o prometeico esforço de conseguir a salvação por suas próprias mãos. Esta atitude apela à força de vontade; tem-se a impressão de se não ter entrado ainda na dinâmica do amor.
* O Moralismo. Albert Camus, nas suas Memórias, escreve: «É preciso encontrar o amor, antes de encontrar a moral, caso contrário é o tormento. A grandeza não vem das contínuas flexões sobre si mesmo, mas, querendo Deus, surge como um belo dia.» Se não se compreende isto, deixam-se sobreviver tendências veterotestamentárias e farisaicas. E isso é muito pouco libertador e pode conduzir a um cristianismo feito de práticas exteriores, e a impor aos outros pesos que nem mesmo nós conseguimos carregar. Seria a versão cristã daquele proselitismo que Jesus condenou duramente.
Fonte: IHU - UNISINOS
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