segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O novo Primaz do Brasil e mais um movimento no tabuleiro


“A nomeação de Dom Murilo Krieger, como arcebispo de Salvador e novo Primaz, é mais um movimento que visa não só as eleições da CNBB, mas talvez a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil”. A afirmação é do historiador Sergio Ricardo Coutinho em artigo que reproduzimos na íntegra.

Sérgio Ricardo Coutinho é mestre em História pela UnB; professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura em Brasília; professor de História da Igreja Antiga no Curso de especialização em História do Cristianismo Antigo na UnB; membro da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) e presidente do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina (Cehila-Brasil).

Eis o artigo.

Qual a importância do “Bispo Primaz” na condução da Igreja de um determinado território? De que modo contribui para a colegialidade-sinodalidade de toda a Igreja daquela mesma região?

Estas perguntas surgem no momento em que recebemos mais uma notícia no “movimento do bispo” no tabuleiro de xadrez da Igreja no Brasil: a nomeação de Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger como bispo “Primaz”.

Na tradição do primeiro milênio da História da Igreja, o primeiro Bispo entre os Bispos de uma província, de uma região, de um patriarcado, garante a unidade das Igrejas locais a estes diversos níveis e a canonicidade do funcionamento sinodal. Na concepção antiga da Igreja, a sinodalidade e a primazia a diversos níveis são dois conceitos interdependentes.

Já antes do primeiro concílio ecumênico de Nicéia (325), quando o cristianismo esteve suficientemente espalhado pelo território do Império Romano, cada cidade era a sede de um bispo. O bispo da capital da província, a metrópole (a cidade-mãe), começou então a assumir determinadas prerrogativas sobre os bispos da própria circunscrição civil: ele presidia o órgão colegiado formado por todos os bispos da região (o sínodo provincial), que provia a eleição dos titulares das sedes vacantes e podia também julgar a depor os bispos indignos.

Esse bispo da capital, cuja autoridade estendia-se, de formas diversas, não só sobre a própria eparquia (diocese), mas também sobre toda a província, tinha o nome de metropolita. O historiador da Igreja antiga, Eusébio de Cesaréia, falava dos Bispos que se reuniam por “províncias”, em Sínodos por causa de diversas controvérsias como, por exemplo, a definição da data da Páscoa.

No entanto, na eclesiologia das Igrejas ortodoxas é conhecido o axioma latino “primus inter pares” para definir o papel do Bispo de Roma. Sem dúvida no âmbito sacramental não existe nada, na Igreja, que seja hierarquicamente superior ao episcopado; pelo que todos os Bispos são “pares” no episcopado, e o “primus” entre eles é apenas “primus inter pares”. Mas o termo “primus”, nos diversos níveis da organização das Igrejas, não deixa de ter significado teológico e canônico na tradição da Igreja indivisa. De fato também os Patriarcas orientais, bem como os Metropolitas das Províncias Eclesiásticas possuem direitos que os outros Bispos não têm, e isto, obviamente, não provém diretamente do poder de ordem, mas de iure canonico.

Em 25 de fevereiro de 1551, o papa Júlio III erigiu o Bispado de São Salvador da Bahia, desmembrando-o integralmente do Arcebispado de Funchal. Em 1676, São Salvador adquiriu status de arcebispado, tendo como dioceses sufragâneas Rio de Janeiro, Olinda, São Tomé e Angola, as duas últimas no continente africano. Seu titular passou a chamar-se também “Primaz do Brasil”.

No século XVIII, a figura mais destacada, sem dúvida nenhuma, do arcebispado da Bahia foi D. Sebastião Monteiro da Vide. De sólida formação jurídica, planejou inicialmente a realização de um concílio provincial. Dada, porém, a ausência do bispo do Rio de Janeiro, contentou-se com um sínodo diocesano onde se promulgaram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Essa foi a única legislação eclesiástica elaborada no Brasil durante o período colonial e as mesmas ganhavam relevância porque a sociedade brasileira colonial era essencialmente sacral e as leis da Igreja eram oficialmente reconhecidas pelo Estado e tinham vigência plena [n.1].

No período da proclamação da República (1889), havia no Brasil apenas uma arquidiocese e onze dioceses para uma população de aproximadamente treze milhões de habitantes. Com a liberdade religiosa concedida pela Constituição de 1891, era possível criar novas circunscri¬ções eclesiásticas.

A Bula Ad universas orbis ecclesias (27/4/1892), do Papa Leão XIII, deu início a uma reorganização da Igreja no Brasil. Surgiram duas províncias eclesiásticas: a do Norte ou Setentrional, com sede na Bahia, e a do Sul ou Meridional, com sede no Rio de Janeiro, tendo cada uma dessas províncias sete bispados sufragâneos (subordinados ao ar¬cebispo metropolitano).

No entanto, foram os últimos 45 anos que os ocupantes da Sede Primacial do Brasil começaram a ter um papel mais contundente, muitas vezes mais como “primus” que como “primus inter pares”. Em função de conflitos pessoais entre o cardeal do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, e seu bispo auxiliar, Dom Helder Camara, o Núncio Apostólico, Dom Armando Lombardi, encarregou-se de fazer os contatos com o Vaticano para conseguir o melhor lugar possível para o seu amigo pessoal. Logo chegou a notícia de que provavelmente Dom Hélder iria para Salvador, onde seria nomeado Administrador Apostólico. Mas o cardeal Dom Augusto Álvaro da Silva, embora já estivesse à frente da arquidiocese de Salvador havia quarenta anos (desde 1924), reagiu contra essa articulação do Núncio, por achar que passaria a ter uma função apenas honorífica.

Mas não teve jeito. Enquanto Dom Helder fora nomeado para a Arquidiocese de Olinda-Recife, seu amigo próximo, outro do grupo dos “Bispos Nordestinos”, foi para Salvador: Dom Eugênio de Araújo Salles. Ficou como Administrador Apostólico até 1968 e, depois, como cardeal-arcebispo e Primaz do Brasil até 1971.

Quando do golpe de 1964, Dom Eugênio Sales se colocou na ala minoritária em relação ao posicionamento da grande maioria do episcopado brasileiro que deu apoio incondicional ao movimento dos militares. Além dos que rejeitavam totalmente o golpe, Dom Eugênio buscou a “neutralidade e expectativa”, “sem comprometer-se nem com vencedores nem com vencidos”, como declarou ainda no início de abril de 1964. Este também era o posicionamento de Dom Helder Camara.

Dada a gravidade da situação política, Dom Helder e Dom Eugênio conseguiram um encontro confidencial com o articulador e condutor da “revolução” Marechal Castelo Branco onde foram pedir a atenção para as arbitrariedades, injustiças e violências por conta do expurgo que estava sendo praticado pelas Forças Armadas contra as pessoas consideradas suspeitas de comunismo [n.2].

Dom Avelar Brandão Vilela foi arcebispo de Teresina (PI) entre 1955 a 1971. Foi transferido a São Salvador da Bahia como Primaz do Brasil em 25/03/1971, onde ficou até 1986. Foi eleito cardeal pelo Papa Paulo VI em 05/03/1973. Oscar Beozzo descreve suas várias atividades: “Vice-Presidente da CNBB (1965); Delegado junto ao CELAM; Membro da Comissão Representativa; Presidente da Comissão de Ação Social; Presidente da Comissão de Opinião Pública; Presidente da Comissão Nacional do Clero; Presidente do SCAI; Vice-Presidente do CELAM (1966-1967); Presidente do CELAM pelo falecimento de Dom Manuel Larrain do Chile (1966-1967), Presidente eleito (1968-1969; 1969-1970 e 1971-1972), um dos presidentes da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín (1968); Presidente da Comissão Organizadora da Assembléia Geral de Medellín, Colômbia (1976); Membro da Sagrada Congregação para a causa dos santos; Membro da Sangrada Congregação para a Educação Católica; Vice-Presidente da COGECAL (Conselho Geral da Pontifícia Comissão para América Latina); Grão Chanceler da Universidade Católica de Salvador” [n.3].

Durante o Governo Militar, Dom Avelar procurou estabelecer diálogo entre os bispos e os militares e, por sua diplomacia, tornou-se na CNBB o principal elo das relações entre a Igreja e o Estado [n.4]. Assumiu a tarefa de negociar, esclarecer os fatos, manter o diálogo com a cúpula governista naquilo que fosse necessário, desde a regulamentação dos contratos de repasse de verbas para manter alguns projetos sociais, como o do MEB, até mesmo a solução de algum conflito quando padres, bispos e religiosos eram acusados ou presos como suspeitos de atos subversivos pelos militares.

Um fato soou como punição a Dom Avelar por parte do governo militar. No ano de 1973, quando o Arcebispo já era o Primaz do Brasil, foi indicado em Pernambuco para receber a medalha de mérito pernambucano na qualidade de Bispo de Petrolina, ao tempo em que em Salvador foi escolhido para receber o título de Cidadão Honorário. Aqueles dois eventos que aconteceria em locais diferentes foram automaticamente suspensos pelos governadores dos seus respectivos Estados logo após uma entrevista de Dom Avelar, onde ele defendia o respeito aos diretos fundamentais do ser humano e aos princípios éticos sobre os quais deve reger a consciência coletiva [n.5].

Na seqüência de Dom Avelar Brandão teremos, de fato, dois homens de “Cúria”: Dom Lucas Moreira Neves e Dom Geraldo Magela Agnelo.

Convocado por Paulo VI, Dom Lucas foi vice-presidente do Conselho para os Leigos (1974-79) e secretário da Congregação para os Bispos e do Colégio dos Cardeais (1979-87). Ainda na Cúria Romana, foi também consultor do Consilium de Laicis (1971-74); membro do Comitê para a Família (1971-76); membro do Conselho do Sínodo dos Bispos (1976-77); membro da Comissão “Justiça e Paz” (1976-81); consultor da Congregação para a Doutrina da Fé (1978-87); membro da Pontifícia Comissão para a Pastoral da Migração e do Turismo (1980-87); membro da Pontifícia Comissão para a América Latina (1980-87) e membro do Comitê para os Congressos Eucarísticos Internacionais (1982). Em 9 de julho de 1987 foi nomeado arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil. No ano seguinte eleito cardeal.

Participou diretamente das discussões sobre a Teologia da Libertação e que culminou numa reunião de diálogo entre os bispos brasileiros e o papa João Paulo II, conforme Oscar Beozzo descreve: “A culminação deste processo de diálogo [entre a Cúria Romana e a CNBB após a divulgação do documento “Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação” – 1984] foi o encontro de três dias (13 a 15 de março de 1986) entre o papa e os responsáveis dos dicastérios romanos, a presidência da CNBB, os cinco cardeais do Brasil e os bispos presidentes dos 14 regionais da CNBB, num total de 21 bispos, para uma avaliação das visitas ‘ad limina’, cumpridas pelos bispos do Brasil durante o ano de 1985 e início de 1986; para uma verificação dos principais problemas pastorais enfrentados pela Igreja no Brasil e um balanço das relações entre Santa Sé e a Igreja do Brasil. Procedimento novo e inédito que permitiu que muitos pontos de tensão e mal-entendidos fossem aclarados diante do próprio papa ou nos intervalos das reuniões ou ainda em refeições tomadas com o papa, como a que reuniu, na última noite, D. Ivo Lorscheiter, D. Aloísio Lorscheider e D. Paulo Evaristo Arns, que haviam aceito intermediar o impasse em que se encontrava a coleção ‘Teologia e Libertação’, cuja publicação fora interrompida por ordem do cardeal Ratzinger em janeiro de 1986. No mesmo jantar, tomaram parte os que faziam restrições à coleção: os cardeais Dom Eugênio Sales e Ratzinger e o bispo brasileiro Dom Lucas Moreira Neves, secretário da Congregação dos Bispos” [n.6].

Apesar deste “diálogo”, o “movimento dos bispos” visava um xeque-mate na Igreja do Brasil: a conquista da presidência da CNBB. O “jogo de xadrez”, pacientemente planejado pelo para João Paulo II nos dez anos anteriores (1984-1994), ao substituir bispos de linha progressista por outros de perfil mais moderado-conservador, proporcionou a vitória de Dom Lucas: o cardeal-arcebispo de Salvador quebrou a longa hegemonia dos progressistas. Com ele, sem voltar às costas para o social, a prioridade era a evangelização (no sentido doutrinal e magisterial) e a defesa intransigente dos valores da família, com tudo o que isso envolve: condenação do uso de métodos contraceptivos e do aborto, mesmo em caso de estupro, e administração restrita de sacramentos como a comunhão a casais de segunda união. No entanto, em 1998, Dom Lucas é convocado para retornar à Roma e trabalhar como prefeito da Congregação para os Bispos.

Nas eleições de 1999 da CNBB, Dom Jayme Chemello, bispo de Pelotas (RS), candidato dos progressistas e foi reconduzido à presidência da entidade depois de tê-la exercido interinamente por nove meses. Deste modo, ficava assim adiado, pelo menos até as próximas eleições, em 2003, o projeto papal de confiar o pastoreio de seu rebanho brasileiro à porção do clero mais preocupada em “salvar almas” que em “lutar contra as injustiças” – ou, ao menos, capaz de isolar a chamada “Igreja da caminhada”.

De fato, veio mesmo em 2003 o retorno do grupo mais conservador, quando novamente um cardeal-arcebispo de Salvador, e (não custa lembrar) Primaz do Brasil, chega novamente à presidência da CNBB. Depois de mais de oito anos como Secretário da Sagrada Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos (16/09/1991 a 12/01/1999), Dom Geraldo Magela Agnelo toma posse da arquidiocese de Salvador em março de 1999. No Consistório de fevereiro de 2001, eleito cardeal.

No entanto, o que se viu foi muito mais a atuação do secretário-geral, na época Dom Odilo Pedro Scherer, que propriamente de seu presidente. O objetivo talvez tenha sido a de implantar os novos Estatutos da CNBB para asseguara a direção das atividades da Conferência aos bispos e diminuindo a interferência dos assessores, e isto deveria ficar mesmo à cargo do secretário-geral.

Pois bem, em 2007, nova vitória da ala moderada-progressista da CNBB com Dom Geraldo Lyrio Rocha.
A nomeação de Dom Murilo Krieger, como arcebispo de Salvador e novo Primaz, é, ao nosso ver, mais um movimento que visa não só as eleições da CNBB, mas talvez a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil (cf. artigos “As Visitas Ad limina” e “Brasileiros na Cúria Romana e seus desdobramentos” de minha autoria, todos publicados aqui no IHU). Porém, fica a expectativa de algum sinal de vida dos demais bispos para que possa se realizar a colegialidade-sinodalidade do “primus inter pares”.

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Notas:

1 - CEHILA. História da Igreja no Brasil, São Paulo: Paulinas, 1992 (4ªed.), tomo II/1, p. 177.
2 - PILETTI, N. & PAXEDES, W. Dom Hélder Câmara: entre o poder e a profecia, São Paulo: Ática, 1997, pp. 290-291 e 296-297.
3 - BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II (1959-1965), São Paulo: Paulinas, 2005, pp. 410-411.
4- PRANDINI, Fernando. PETRUCI, Vitor A. DALI, Frei Romeu (orgs). As relações Igreja Estado no Brasil: durante o governo do Marechal Costa e Silva (1967-1970). Vol. II (Coleção Igreja-Estado), São Paulo: Edições Loyola, 1986, pp.43-44.
5 - Id. Ibid., Vol. III (Coleção Igreja-Estado), pp. 63-65.
6 - BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: de João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo, Petrópolis: Vozes, 1994, p. 250. Os grifos em negrito são nossos.

Sergio Ricardo Coutinho

Fonte: IHU

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