sábado, 11 de dezembro de 2010
Os filhos da Teologia da Libertação
Frutos da “opção preferencial pelos pobres”, movimentos sociais, MST e Zapatista, dão vida a um “espírito” que nasceu na década de 1970
Marcelo Netto Rodrigues
Imagine a seguinte conjuntura política: ditaduras militares apoiadas pelos Estados Unidos em inúmeros países da América Latina. O período? Fins da Guerra Fria, década de 1980. Os potenciais “inimigos” do Tio Sam? Grupos guerrilheiros e partidos de esquerda. Certo? Errado. Para a CIA, “a Teologia da Libertação e as suas células conhecidas por CEBs (Comunidades Eclesiais de Base)” eram, há 30 anos, os reais agentes capazes de “desestabilizar” a região.
De acordo com o documento redigido pelo governo Reagan à época, conhecido como “Santa Fé II”, elaborado na cidade de mesmo nome, situada no Novo México, ambas representariam “uma doutrina política disfarçada de crença religiosa, com um significado antipapal e antilivre empresa, destinadas a debilitar a independência da sociedade frente ao controle estatal”. Ou seja, em outras palavras, “estariam a serviço do comunismo”, ou melhor, contra o capitalismo.
Setembro de 2010. O “perigo comunista” da Teologia da Libertação ressurge em noticiário nos Estados Unidos. O apresentador populista da Fox News, Glenn Beck, poucos dias após acusar Obama de socialista e de ser “um muçulmano que odeia os brancos” – em xenofóbico discurso ao lado de Sarah Palin, realizado de forma ultrajante no mesmo local e dia que, em 28 de agosto de 1963, Martin Luther King pronunciou o seu célebre discurso “I have a dream” –, muda de estratégia e volta a afirmar que Obama é cristão, mas o acusa de “algo pior”: seguir os ensinamentos “demoníacos” da Teologia da Libertação.
Com os olhos fixos na câmera, durante entrevista para a própria Fox News, Beck incita seus telespectadores: “Pergunte a qualquer um na Igreja Católica, eles viram, é marxismo fantasiado de religião. E aconteceu na América do Sul”. Num macarthismo anacrônico – para não dizer risível –, o teor de suas palavras e a sua expressão facial viajam no tempo como uma reencenação piorada daquela cena clássica do filme (subliminarmente anticomunista) Invasion of the Body Snatchers (1956), na qual o personagem principal grita histericamente para quem possa ouvi-lo para que não confiem nem em seus próprios vizinhos (pois estes podem ser “um deles”, sem que você nem desconfie).
Marxismo como instrumento
Tirando o fato concreto de que uma busca na página do World Factbook da CIA 2010 ainda revele que, sob o tópico “grupos de pressão política”, encontram-se na mesma categoria tanto a Igreja Católica e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Brasil, quanto o Taleban, no Paquistão, e o Exército de Libertação Nacional (ELN) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), no país vizinho, há muito de ficção quando se associa diretamente a Teologia da Libertação ao comunismo marxista e não este último e a própria Teologia da Libertação ao assim chamado cristianismo primitivo – época que se inicia com a morte de Jesus e vai até o ano de 325, quando Constantino transforma o Cristianismo em religião oficial do Império Romano.
Isso porque o que há na Teologia da Libertação, além da inspiração nos chamados primeiros cristãos, é o uso seletivo e crítico do marxismo como instrumento de análise para desvendar os mecanismos que levam as sociedades a terem estruturas econômicas e sociais injustas, com o intuito de demonstrar ao cristão como ele deve agir no mundo. Elementos como o ateísmo materialista, por exemplo, são rejeitados, e outros, assimilados, como a crítica do capitalismo e do poder das classes dominantes, a inevitabilidade do conflito social e a perspectiva da auto-emancipação dos explorados.
Na mesma lógica, Leonardo Boff, um dos principais teólogos da libertação, em seu livro O Caminhar da Igreja com os Oprimidos (1980), rejeita o materialismo dialético, mas reconhece o valor científico e político do materialismo histórico, como método que permite denunciar as falsificações ideológicas do capitalismo, e dar conta das verdadeiras causas que geram o empobrecimento. Diz ele: “Quando agentes pastorais mergulham no mundo cultural do pobre, não deixam de encontrar o marxismo, não como filosofia materialista e negadora de Deus, mas como o único instrumento a seu alcance para entender sua condição de explorados e como um caminho de organização, de formação de consciência crítica e de mobilização dos setores populares”.
Boff, ainda em outro livro, de co-autoria com seu irmão Clodovis Boff, Como fazer Teologia da Libertação (1986), detalha melhor essa afinidade eletiva: “Na Teologia da Libertação, o marxismo não é tratado como uma matéria em si mesmo, mas sempre da sua relação e em relação ao pobre. [Assim,] colocando-se firmemente ao lado dos pobres, teólogos da libertação questionam Marx: 'O que você pode nos dizer sobre a situação de pobreza e sobre os meios para superá-la?' Aqui, os marxistas são submetidos ao julgamento dos pobres e à sua causa, e não o contrário”.
Cristianismo Primitivo
Por outro lado, a associação entre os primeiros cristãos e as CEBs – comunidades compostas por membros das classes populares que, morando no mesmo bairro, se encontram para refletir e transformar a realidade, por meio do método ver-julgar-agir, a partir da leitura da Bíblia em articulação com os problemas reais da vida cotidiana – é repleta de sentido, já que entre os primeiros a “novidade” que chamava a atenção era que todos, pensando no bem-estar coletivo, usufruíam de seus bens em conjunto e haviam coletivizado a posse das coisas.
Tal ineditismo de conduta aliado a um constante ambiente de perseguições, viria a ser destacado por Engels, muitos séculos mais tarde, em 1894, no seu O Cristianismo Primitivo, texto no qual o parceiro de Marx enxerga pontos notáveis de contato entre a história do cristianismo primitivo e a do movimento proletário moderno: “Tal e qual o movimento proletário moderno, o cristianismo era em sua origem a expressão dos oprimidos e se apresentava primeiramente como a religião dos escravos, dos libertos, dos pobres, dos homens privados de direito e dos povos subjugados ou dispersos pelo Império Romano”.
Assim, o novo, que surge na década de 1970 quando a Teologia da Libertação é gestada não é a tal confluência entre cristianismo e socialismo – que de longe sempre tiveram mais coisas em comum do que uma improvável ligação entre o cristianismo e o capitalismo. Mas sim o fato de a Teologia da Libertação ter trazido a luta pelo Reino de Deus para a Terra, utilizando-se do marxismo como instrumento metodológico para combater as injustiças sociais criadas pelo capitalismo, já que para ela, o Reino está bem próximo, ou seja, é possível, está ao alcance de todos, aqui e agora.
Concílio Vaticano II (1962-1965)
Mas para que a Teologia da Libertação pudesse encontrar terreno fértil para lançar raízes nessa direção foi fundamental o aggiornamento propiciado pelo Concílio Vaticano II. De acordo com Clodovis Boff, “o Vaticano II significou a 'deseuropeização' da Igreja e a sua abertura verdadeiramente 'católica' [palavra de origem grega que significa universal] – fato que só encontra, na história, paralelo com a ruptura da Igreja Primitiva em relação à matriz hebraica e sua partida para o mundo grego”.
Dito em outras palavras, é como se o Concílio Vaticano II (1962-1965) – e não o Concílio de Trento (1545-1563) – fosse a esperada Contra-reforma Católica à Reforma Protestante, no que concerne à recuperação de uma ética cristã que, entre outras coisas, condena explicitamente a tese da predestinação de “alguns eleitos” e estende indiscriminadamente a salvação a todos, incluindo aqueles marginalizados e excluídos pela concentração capitalista decorrente da ideia salvífica em torno da vocação ao trabalho e, até mesmo, a não-cristãos.
Desse modo, a Teologia da Libertação surge, a partir de 1969, como prática pastoral latino-americana pensada em consonância com o Concílio Vaticano II, após essa orientação ter sido definida na reunião episcopal de Medellín (1968), o que preencheu o imaginário eclesial com a temática Libertação, e ter sido aprofundada em Puebla (1979), com a evangélica opção preferencial pelos pobres.
Mas quem são os pobres?
Neste ponto, diante do marxismo, a Teologia da Libertação amplifica o conceito de “pobre”, indo ao encontro da compreensão que hoje ativistas antiglobalização também já desenvolveram.
“Por 'pobre', na verdade, não estamos querendo dizer aquele indivíduo pobre que bate na porta pedindo esmolas. Estamos falando sobre o pobre coletivo, as “classes populares”, que são uma categoria muito mais ampla do que o “proletariado” escolhido por Karl Marx (é um erro identificar o pobre da Teologia da Libertação com o proletariado, apesar de muitos dos seus críticos o fazerem): os pobres são também os trabalhadores explorados pelo sistema capitalista; os subempregados, aqueles deixados de lado pelo processo produtivo – um exército de reserva sempre à mão para substituir aqueles que estão empregados; são os trabalhadores do campo, os trabalhadores migrantes sazonais”(1986), segundo esclarecem os irmãos Boff.
Neste sentido, aquela famosa frase do bispo brasileiro dom Hélder Câmara: “Quando dou comida ao pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que os pobres não têm comida, me chamam de comunista” ganha contornos reais e metafóricos. De fato, até mesmo Che Guevara uma vez, em virtude da histórica religiosidade cristã do continente, sentenciou: “A revolução na América Latina só acontecerá quando os comunistas deixarem de ser preconceituosos com a fé dos cristãos; e os cristãos deixarem de ser proselitistas com os comunistas. Nesse dia, a revolução será imbatível”. Exemplo claro dessa associação a qual Che se refere foi a Revolução Sandinista (1979), na Nicarágua, que chegou a ter vários ministros de Estado ligados à Teologia da Libertação – inclusive padres.
Mas por que aparentemente a partir da década de 1990 a Teologia da Libertação parece entrar em refluxo? Teria o “espírito” da Teologia da Libertação simplesmente evaporado da cena política, como num passe de mágica, justamente quando tudo o que sempre esteve atrelado à sua agenda de resistência e libertação humana finalmente ganhou dimensões e conexões globalizadas?
Para se chegar a uma resposta plausível, alguns pontos precisam ser elencados. Em primeiro lugar, por não possuir caráter proselitista, a Teologia da Libertação sempre fomentou a secularização em seu sentido mais amplo, já com o propósito de que em algum momento o seu “espírito” viesse a se descolar da religião, ao incentivar a criação de organismos laicos para exercerem influência no mundo. Muitos movimentos sociais, a princípio, foram tutelados pela Teologia da Libertação, como por exemplo, o MST no Brasil e os zapatistas no México.
MST
Fundado oficialmente em 1984, desde 1979, o movimento contava com o apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), órgão ligado à CNBB, que contribuía na organização dos sem-terra para que eles construíssem o seu próprio instrumento de luta.
Fora isso, a história não-oficial contada por Ademar Bogo, um de seus principais dirigentes – ele próprio um ex-seminarista – diz que a ideia de criação do MST surgiu “da cabeça” do já falecido bispo de Chapecó, dom José Gomes, alinhado à Teologia da Libertação, que mandou cinco ex-seminaristas se espalharem pelo país para iniciarem trabalhos de base com trabalhadores rurais.
A “mística” do Movimento, suas decisões em assembleias, a vida comunitária nos acampamentos e o estímulo ao trabalho em pequenas cooperativas ou coletivos são traços marcantes dessa herança.
Zapatistas
Algo semelhante aconteceu com os zapatistas. Em 1994, quando os insurgentes apareceram houve grande confusão. Foram, a princípio, descritos pelos meios de comunicação e pelo governo mexicano como inspirados pela Teologia da Libertação, enquanto dom Samuel Ruiz, o bispo de San Cristóbal de las Casas (Chiapas), era acusado de ser o guerrilheiro de Deus. Só depois soube-se que “foram militantes marxistas que criaram o EZLN, [e] que [este] não se refere ao cristianismo, mas antes à cultura maia”, como explica o sociólogo Michael Löwy, no ensaio A Teologia da Libertação acabou? (1996).
Tal “associação” entre marxismo e cristianismo na origem dos zapatistas não é completamente descabida. Dom Ruiz, autor de La teologia bíblica de la Liberación (1975), foi responsável por um trabalho de educação pastoral na região por muito anos – com a ajuda de jesuítas, dominicanos e de ordens religiosas femininas, o que resultou “numa vasta rede de 7.800 catequistas indígenas e 2.600 comunidades de base que contribuíram poderosamente para a conscientização das comunidades indígenas, ajudando-as a tomar conhecimento de seus direitos e a lutar para defendê-los”.
Além disso, há o detalhe de que o próprio subcomandante Marcos, se vier a ser mesmo Rafael Sebastián Guillén Vicente, como sustenta o governo mexicano, antes de começar a organizar os zapatistas, por volta de 1984, supostamente teria passado um tempo na Nicarágua à época da Revolução Sandinista, e que o próprio quando adolescente teria estudado no Instituto Cultural Tampico, um colégio privado ligado à Companhia de Jesus, na localidade de mesmo nome.
Transmutação
Um segundo aspecto inerente à Teologia da Libertação é que ela nasce com a intenção de desaparecer, de não ser mais chamada por este nome, por acreditar que quando o seu chamado fosse assimilado pela teologia como um todo, e que esta o fizesse o seu próprio chamado, então o seu nome poderia ser deixado de lado porque a esta altura todas as teologias seriam teologias da libertação do seu próprio jeito – pois caso contrário, não seriam teologias cristãs (Boff e Boff, 1986).
O chamado, como sabemos, sob o longo papado do conservador João Paulo II (1978-2005), não foi o esperado, mas sim o da “revaticanização” da Igreja latino-americana, com a censura à Teologia da Libertação, o afastamento de bispos progressistas e a nomeação de padres conservadores para os seus lugares. Assim, consequentemente, as CEBs foram forçadas a diminuir sua atuação política e a Renovação Carismática, patrocinada pelos Estados Unidos e incentivada pelo documento “Santa Fé II”, ganhou espaço.
Como consequência, a Teologia da Libertação não desapareceu como o previsto. Seus mártires continuam a dar seu sangue seguindo o caminho do padre guerrilheiro colombiano Camilo Torres (1966), do bispo de El Salvador Oscar Romero (1980), do padre brasileiro Josimo Tavares (1986), da freira estadunidense naturalizada brasileira Irmã Dorothy Stang (2005).
Mas o seu “espírito” ultrapassou os limites da igreja, transfigurou-se, em busca de lugares mais propícios ao seu chamado, e atua há algumas décadas em movimentos sociais nos quais é possível ver o Cristo no rosto e no corpo do excluído, do pobre, da mulher oprimida, do negro, do indígena, do desempregado. Esse “espírito” transmutado também pode ser encontrado, em maior ou menor grau, nos governos Evo (Bolívia), Correa (Equador), Lugo (Paraguai), Chávez (Venezuela), Lula (Brasil), Mujica (Uruguai) e Funes (El Salvador).
Posto isto, o apresentador populista conservador da Fox News citado no início desta análise não deveria estar preocupado com os ensinamentos “demoníacos” da Teologia da Libertação, nem com o seu alegado comunismo, e muito menos com o “espírito” que move Obama. Mas sim com o “espírito” do cristianismo libertário que se desprendeu das amarras de sua esfera religiosa e que a cada dia ganha mais corações e mentes na América Latina.
Como disse Frei Betto, outro expoente da Teologia da Libertação em entrevista recente ao site desinformemonos.org: “Jamais haverá participação popular nos processos políticos latino-americanos sem incorporar a religiosidade do povo. Aqui a porta da razão é o coração e a chave do coração é a religião”. Oxalá esse “espírito” seja levado por correntes de vento em direção ao Norte e contamine logo os Estados Unidos por inteiro.
Marcelo Netto Rodrigues é ex-editor do jornal Brasil de Fato e cientista social.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário