quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Não haverá paz no mundo sem teologia do pluralismo religioso

Em 2011, no dia 8 de fevereiro, o Fórum Mundial de Teologia e Libertação (FMTL) irá celebrar, dentro do Fórum Social Mundial (FSM), em Dakar, no Senegal, uma oficina sobre “Religiões e Paz: A visão/teologia necessária para tornar possível uma Aliança de Civilizações e de Religiões para o bem comum da humanidade e a vida no planeta”.

A oficina está sendo organizada pela Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT/EATWOT), por meio de sua Comissão Teológica.

Para compreender a importância desse debate na atual conjuntura mundial e eclesial, a IHU On-Line entrevistou por e-mail o responsável pela Comissão Teológica da ASETT na América Latina, o teólogo espanhol José María Vigil.

A constatação do teólogo é clara: “As religiões não dialogam; coexistem simplesmente”. Por isso, a oficina será um espaço para abordar “o próprio coração das religiões”, a “mudança interna que elas têm que realizar na sua ‘visão’ (ou teologia, no vocabulário cristão) para poder superar o bloqueio que atualmente as paralisa”, explica Vigil. Segundo ele, “isso se chama ‘teologia do pluralismo religioso’”, ou seja, “teologizar” sobre o significado da pluralidade de religiões.

Para facilitar a participação e o debate, a ASETT disponibilizou as conferências resumidas de vários especialistas que serão apresentadas sobre a temática proposta na oficina do ano que vem. O sítio do IHU, em suas Notícias do Dia, está disponibilizando as principais conferências a respeito da temática.

José María Vigil é teólogo espanhol claretiano, naturalizado nicaraguense e que vive atualmente no Panamá. É o responsável pela Comissão Teológica na América Latina da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT/EATWOT) e colabora com o sítio Servicios Koinonía, além de coordenar todos os anos a edição da “Agenda Latino-Americana Mundial”. Estudou teologia em Salamanca e em Roma, e psicologia em Salamanca, Madri e Manágua. Dentre seus livros, destacamos Teología del pluralismo religioso. Curso sistemático de Teología Popular (El Almendro, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em 2011, será realizada a oficina “Religiões e Paz: A visão/teologia necessária para tornar possível uma Aliança de Civilizações e de Religiões para o bem comum da humanidade e a vida no planeta”, dentro da programação do FSM. Qual o objetivo de fundo para propor este debate hoje?

José María Vigil – Em Dakar, o FSM terá duas frentes de atividades. Uma será pública e aberta, organizando e realizando “atividades autogestionadas” como as que farão outras muitas entidades e movimentos. E outra frente será um “seminário de elaboração teológica”, uma atividade própria e interna, com a participação de teólogos e teólogas vindos de todo o mundo, representando entidades, movimentos, universidades, associações, para dar uma contribuição de produção teológica mesmo, que versará desta vez sobre o futuro da teologia.

A oficina “Religiões e Paz” pertence à primeira frente de atividades do FMTL no FSM, e é uma das mais de dez oficinas semelhantes, sobre temáticas diferentes, devidas à iniciativa do FMTL. A realização concreta dessa oficina foi encomendada à ASETT ou EATWOT e já começou na sua fase que podemos chamar de “telemática”.

O objetivo de fundo é fazer avançar o aprofundamento da consciência que todos nós temos cada vez mais clara a urgência de pôr as religiões a trabalhar juntas pela paz do mundo e pelo bem-estar da vida no planeta. É um tema que já se tornou lugar-comum nas últimas décadas: as religiões não dialogam; coexistem simplesmente, não conseguem apagar os muitos focos de conflitos inter-religiosos que ainda ardem no mundo atual e não se dão conta de que a emergência ecológica na qual estamos é provocada por um sistema social, por ideologias e por concepções sobre a nossa relação com a natureza, elementos que, em boa parte, têm sido criados pelas religiões. Essa oficina programada pelo FMTL quer questionar, em um foro tão amplo como o FMS, a necessidade de conscientizar sobre essa problemática, de elaborar a “visão ou teologia necessárias”, e não de nos acostumar à falta atual de diálogo.

IHU On-Line – E qual seria a conjuntura concreta ou o aspeto concreto ao qual ela se dirige?

José María Vigil – Dentro desse grande objetivo, a oficina “Religiões e Paz” quer se concentrar no aspeto profundo e interno, diríamos teológico. Não quer ser uma conversa sobre as condições sociopolíticas conjunturais atuais das possibilidades do diálogo e da paz, mas das condições internas que permitem ou bloqueiam o diálogo das religiões, além ou antes de as condições sociopolíticas permitirem. Quer dizer: o grande problema ou obstáculo para as religiões se falarem, dialogarem, se unirem… não é externo, mas sim interno. É ideológico, teológico, epistemológico até.

Mesmo que duas religiões estejam em boa vizinhança, com frequência não dialogam, nem podem dialogar. Podem se levar bem e, no máximo, como se viu claramente em Assis, podem se convocar para rezar juntas em uma mesma cidade, mas em separado, e fazer depois uma fotografia todas juntas, mas só até aí. Diálogo religioso mesmo – perguntarem-se mutuamente a respeito do que pensam de si e das outras, tentar encontrar os elementos “homeomórficos” (que têm uma função semelhante) em cada uma delas e que talvez compartilham, se estudarem mutuamente, se perguntarem sobre o que poderiam e deveriam fazer juntas para animar a humanidade a se superar e a superar o momento atual –, isso, infelizmente, não está sendo feito. Estão paralisadas. Nenhuma sabe como se poderia fazer.

E têm alguma coisa dentro que as continua paralisando: o complexo de superioridade, a convicção de ter a verdade total e não poderem apreender nada das outras, a consciência de serem cada uma “a única religião verdadeira” ou “a melhor”, ou aquela à qual todas as outras devem vir a se converter… Não podem dialogar mais do que em aparência formal.

IHU On-Line – Isso se deve a algum medo?

José María Vigil – Sim, mas não só, nem principalmente. Nós achamos que o principal fator é, como dizia, interno, ideológico, epistemológico. As religiões têm vivido a sua história toda sobre a convicção de serem, cada uma, a única, a verdadeira, a universal, a perfeita, a que sabe tudo e não tem nada a aprender de ninguém… (Não todas da mesma maneira, obviamente. As religiões não são iguais nem dizem a mesma coisa, como o igualitarismo pretenderia).

“Por que existem religiões e não só a minha religião que eu fui ensinado que era a ‘única verdadeira’? As outras têm valor?”

Sendo essa tradição histórica, milenar até, as religiões não podem mudar de uma hora para a outra. (Há algumas poucas décadas o mundo virou mundializado e irreversivelmente multicultural e multirreligioso.) Precisam digerir, processar em uma outra forma aquela autocompreensão tradicional, que já não é sustentável no mundo atual. Mas o que fazer com aquela herança que as religiões receberam como intocável, por ser revelada e imutável? Eis aí o problema, que é interno, independentemente da boa ou má relação com a religião vizinha, independentemente das boas ou más propostas da ONU para uma Aliança de Civilizações e religiões… É outro nível.

IHU On-Line – Para esse debate, parte-se das propostas da teologia pluralista ou da teologia do pluralismo religioso – TdPR. Em que consiste, em linhas gerais, essa teologia?

José María Vigil – Sim, esse é o foco, a perspectiva formal da oficina: não vamos falar de conjuntura internacional, de condições sociopolíticas nem interculturais (mesmo sendo tudo isso muito importante). Mas falaremos do próprio coração das religiões, da mudança interna que elas têm que realizar na sua “visão” (ou teologia, no vocabulário cristão) para poder superar o bloqueio que atualmente as paralisa.

Isso se chama “teologia do pluralismo religioso”: consiste em “teologizar”, ou seja refletir sobre o significado que pode ter o pluralismo religioso, a pluralidade de religiões: por que existem religiões e não só a minha religião que eu fui ensinado que era a “única verdadeira”? As outras têm valor? Têm valor por si mesmas ou o recebem da minha? Posso reconhecê-las como válidas, ou tenho que procurar convertê-las? E se posso reconhecê-las, como ficam então a unicidade e “absoluticidade” que a minha religião sempre proclamou? Nessa reflexão toda consiste a teologia do pluralismo religioso.

Como se vê, não é a mesma coisa que o “diálogo inter-religioso”. Uma coisa é refletir sobre a pluralidade religiosa (”teologia do pluralismo religioso”), e outra, dialogar mesmo com outra religião. Sem a transformação de mentalidade que essa reflexão vai provocar, não será possível “dialogar” verdadeiramente com outra religião, porque será um diálogo de surdos, aparente diálogo daqueles que pensam – cada um – que só eles têm a verdade e que o outro não é interlocutor religioso válido. Por isso nós dizemos que a teologia do diálogo inter-religioso é um “intradiálogo”, um diálogo que uma religião deve fazer consigo mesma antes de dialogar com outra, para que o diálogo possa ser viável e frutífero.

IHU On-Line – De que forma a TdPR se relaciona com a Teologia da Libertação – TdL?

José María Vigil – Não é que se relacionam, senão que têm que ser relacionadas. Em princípio, são teologias independentes, estão em paradigmas diferentes, diríamos que não têm nada a ver. Pode-se ter uma teologia muito libertadora e nada pluralista… De fato, a TdL clássica, a que conhecemos, está no paradigma inclusivista, que era comum na época; não é teologia pluralista.

Eis aqui a tarefa a ser desenvolvida: cruzar, confrontar a TdL clássica – que é inclusivista – com a TdPR, quer dizer, repensar, refazer a TdL além do pressuposto inclusivista. Ou seja, elaborar uma TdL pluralista, não mais inclusivista. E isso não é fácil, nem fica garantido pelo fato de sermos teólogos/as da TdL. É como no caso do paradigma feminista: um teólogo/a pode ser muito libertador/a… e ter mentalidade patriarcalista. Uma visão não implica a outra, estão em paradigmas ou níveis diferentes. Deve-se dar um salto de consciência e assumir o novo paradigma, uma nova forma de ver – a pluralista –, o que irá causar uma verdadeira comoção…

A ASETT assumiu no ano 2000, na sua Assembleia Geral ocorrida em Quito, o desafio de provocar esse cruzamento entre a TdL e a TdPR, e decidiu aquele projeto de pesquisa e elaboração teológica que deu como fruto a coletânea de cinco volumes chamada Pelos muitos caminhos de Deus, felizmente completada neste mesmo ano de 2010.

IHU On-Line – Em sua opinião, o que as religiões precisam abandonar, retomar ou construir juntas para chegar à paz?

José María Vigil – Devem deixar muitas coisas, algumas delas muito queridas e que sempre fizeram parte do seu patrimônio simbólico. Devem abandonar o complexo de superioridade que as fazia considerar que extra me nulla salus, que só elas eram “a religião verdadeira”. Devem deixar as pretensões de “unicidade”, tanto a respeito da sua natureza como da sua revelação. Devem retirar o “mapa teológico geocêntrico”, que as punha no centro do mundo religioso, e devem aceitar um novo mapa teológico “heliocêntrico”, com só Deus no centro, e elas, todas as religiões, girando sororalmente companheiras ao serviço da humanidade para aquilo que tem a ver com a relação com o Mistério Divino. Devem atualizar sua epistemologia: muitas estão ainda em uma epistemologia mítica, que interpreta como literalmente históricas as crenças tradicionais, sem aceitar a visão hermenêutica crítica ou suas consequências todas… e superar aquele “modelo de verdade” objetivista, metafísico, fixista, de verdades eternas “claras e distintas” (Aristóteles e Descartes), por um modelo mais concorde com o que a humanidade sabe e pensa hoje. E aí, reconstruir a “outra religião possível”.

IHU On-Line – É uma meta factível?

José María Vigil – A curto prazo não, obviamente. As dificuldades são profundas. A mudança que está sendo exigida é epocal. O que está em jogo é uma verdadeira releitura, uma reelaboração, um novo nascimento. E estamos apenas abrindo a porta. Não só as religiões (instituições), mas também a teologia, e os teólogos e as teólogas.

É por isso que o tema é urgente: não haverá paz entre as religiões, e no mundo, enquanto não tivermos uma visão pluralista. (No contexto inter-religioso, falamos de “visão” como sinônimo de fato de “teologia”, palavra com a qual algumas religiões têm dificuldades; para nós, de nominibus non est quaestio.)

Nesse sentido, é uma tarefa a ser realizada por todos, e em toda parte, e por toda a teologia. Quer dizer: se a teologia da libertação não chegar a ser teologia pluralista da libertação, não vai estar à altura histórica atual da libertação hoje necessária. A libertação que não é pluralista e que não liberta os povos dos ancestrais preconceitos exclusivistas (existem regiões inteiras do mundo com religiosidade exclusivista) é uma libertação opressora. E a libertação que ainda fica presa do inclusivismo ainda está em conivência com visões que não liberam integralmente ao ser humano.

A tarefa não é só dos teólogos e das teólogas do pluralismo: toda a teologia tem que se confrontar com o paradigma pluralista, tem que se transformar em teologia pluralista e tem que fazer passar com que as pessoas que atende passem da velha visão inclusivista para a visão pluralista, a visão que permitirá o outro mundo possível.

IHU On-Line – Que limites e possibilidades podem ser encontrados em meio à pluralidade de visões a respeito da Divindade?

José María Vigil – Esse é um problema concreto; não é o grande problema ou o problema estruturalmente central. Tem teólogos que estão refletindo a superação do teísmo, tido até agora como indubitável no cristianismo. Sim, assim tem sido nossa tradição – teísta –, ao menos grosso modo. Mas, hoje, quando conhecemos melhor os limites do conceito de theos (fundamentalmente grego), conhecendo outras religiões não teístas e escutando suas críticas e seu testemunho, fica cada dia mais claro que não podemos fazer do teísmo um “modelo” insuperável, essencial, imprescindível…

Mas esse é um dos problemas concretos, ou setoriais, eu diria. A TdPR quer se confrontar sobretudo ou em primeiro termo com a problemática estrutural, de base, epistemológica.

IHU On-Line – Muito se tem falado a respeito de uma “aliança de civilizações”, termo tão caro à ONU, defendido também por Bento XVI e às vezes utilizado como contraponto ao “choque de civilizações” de Samuel Huntington [1]. Qual a concepção da EATWOT a respeito desse conceito? Quais são seus fundamentos centrais?

José María Vigil – Nós não somos políticos, nem temos influência nesses âmbitos, mas estamos convencidos de que a teologia do pluralismo religioso tem muito a dizer ao mundo atual, às religiões e aos políticos, sobretudo neste momento de mundialização e de interculturalidade e inter-religiosidade conflitiva. Se as instituições mundiais e as forças sociais não contarem com a teologia, explicitamente com a TdPR, terão que fazer teologia leiga, ou civil, ou com outro nome, mas “não haverá paz no mundo sem teologia do pluralismo religioso”, sem uma teologia pluralista mesmo, atrevo-me a dizer.

Cada dia vemos mais clara a pertinência dessa teologia. Assim como o mundo necessitava da TdL para lutar melhor pela justiça e defender os pobres, o mundo precisava e ainda precisa da teologia feminista, que está transformando aos poucos mas sem pausa o mundo patriarcal que herdamos. E temos que acrescentar: o mundo precisa, necessita da TdPR. Sem ela não serão removidos os preconceitos que arrastamos ancestralmente, que foram elaborados em um mundo totalmente diferente do mundo mundializado e plural em que hoje vivemos. Sem ela, vivida no interior de cada religião, não será possível que as religiões sejam parceiras sinceras em uma Aliança pelo Bem Comum da vida e da humanidade. A ONU deveria estar muito interessada na TdPR.

IHU On-Line – Por outro lado, muito se fala de paz hoje, muitas vezes apenas como a não existência de conflitos. Nesse sentido, como o senhor definiria essa “paz” possível por meio das religiões?

José María Vigil – É claro, sabemos todos que a paz não é só a ausência de guerra… A paz não é um conceito negativo, mas extremamente positivo. Poderíamos dizer que a paz seria o shalom (judeu), ou o shalam (árabe), que não são conceitos negativos. Pelo contrário, são conceitos de plenitude: a paz é o resumo de todos os bens salvíficos.

Isso também se reflete na teologia do pluralismo religioso, que teria como funções ou tarefas: uma primeira, negativa, de desconstrução, de desmonte dos obstáculos, dos preconceitos geradores de conflitos, dos axiomas superados que hoje viraram daninhos inclusive no mundo mundializado atual; e uma segunda tarefa, positiva, a de reconstrução, o encontro prazeroso das convergências religiosas, da muita riqueza comum, das inesgotáveis peculiaridades que cada religião tem como lampejos únicos da luz única e eterna do Mistério, a função mesma de “religação” por cima da imensa “hierodiversidade” ou “diversidade do sagrado”.

IHU On-Line – Em sua opinião, quais são os pressupostos básicos para que seja possível estabelecer um verdadeiro e rico diálogo entre as religiões? Existem âmbitos acadêmicos, políticos, culturais ou sociais necessários para isso?

José María Vigil – As “palestras e falas” da oficina em Dakar, antecipadas no livreto que elaboramos e colocamos antecipadamente na internet, respondem a essa mesma pergunta: quais são os pressupostos básicos, os mínimos, os mais comuns, que poderíamos elaborar e consensualizar, a fim de que sirvam de base comum para o diálogo inter-religioso e para a colaboração entre as civilizações e entre as religiões?

Nessas palestras – textos muito breves –, os autores fazem as suas propostas. Mediante o livreto, a ASETT quer abrir a todo o mundo interessado a possibilidade de acompanhar e inclusive de participar nessa reflexão. A pessoa interessada, a comunidade que sintoniza, pode fazer essa reflexão por sua conta, talvez se ajudando com essas “palestras”, expressadas em um estilo que visa precisamente a provocar um debate. E podem, se quiserem, partilhar a sua reflexão enviando-a para ser levada em conta na oficina de Dakar. Podem responder a essa mesma pergunta que você me faz. É a própria pergunta da oficina.

Mas, veja, não vamos nos perguntar pelos âmbitos acadêmicos, políticos, culturais ou sociais necessários para isso. É a temática costumeira nos diálogos e nas falas sobre diálogo inter-religioso. Mas nós, como dizíamos, queremos nos concentrar no aspeto propriamente teológico, só, que é o aspecto normalmente esquecido nas falas desses níveis dos fóruns internacionais. Somos teólogos e teólogas, e mesmo sabendo que a teologia não é tudo, somos conscientes de que ela é muito necessária, imprescindível até, e queremos levar essa fala a esse fórum. E estendemos a mão para que muitas das inumeráveis pessoas que não poderão viajar a Dakar nos acompanhem. A época das comunicações permite isso. Queremos tentar um jeito novo de realizar uma oficina em um fórum internacional, aberta para todos os que não podem viajar.

IHU On-Line – Em um período de crise ambiental em que “a natureza geme em dores de parto”, como propõe a Campanha da Fraternidade 2011 no Brasil, como as religiões podem contribuir para a defesa e a proteção da Criação?

José María Vigil – No objetivo da oficina diz-se: “para o bem comum da humanidade e da Vida no planeta”. Já não podemos ter só o objetivo da humanidade, como o antropocentrismo religioso nos educou. O bem comum da humanidade ficaria absolutamente curto e mal-entendido se deixasse de buscar o bem comum da vida no planeta (além dele é pretensioso dizer que podemos fazer alguma coisa, hoje ao menos).

Mas nesta última década (a consciência da emergência da ameaça climática não tem dez anos), a situação mudou tanto que as prioridades se deslocaram todas. Todos os serviços tradicionalmente feitos à humanidade ficaram curtos diante da urgência planetária. Se “a caridade começa pela própria pessoa”, hoje a caridade realista deveria começar pelo planeta: todos os nossos objetivos estão ameaçados de morte, ante o que está vindo. Em rigor, estamos caminhando para a extinção da nossa espécie. Se não mudarmos – e já tem quem duvide que seja possível mudar a tempo – o sistema atual de vida (economia, produção, consumo, contaminação ambiental, destruição da ecologia…), estamos nos aproximando a cada dia do nosso fim. Não é exagero, é literalmente real, e mais provável do que o contrário.

“Como é possível que as religiões ainda não tenham pedido perdão por terem permanecido cegas ao ecológico?”

Nessa conjuntura, como é possível que as religiões ainda não tenham pedido perdão por terem permanecido cegas ao ecológico? Como não levantaram a sua voz profética contra os que se opõem egoistamente às medidas urgentes para o salvamento do planeta e da humanidade? E como ainda não convocaram um concílio verdadeiramente “ecumênico” (de todas as religiões que habitam a ecumene, a “casa habitada”) para se unirem e se concentrarem na única prioridade verdadeiramente prioritária?

Sabe por que isso é ainda possível? Porque algumas religiões ainda têm visões espiritualistas, sobrenaturalistas, que pretendem salvar o mundo “das almas”, fazendo prosélitos para si mesmas, esquecendo que a missão é outra. A TdPR também tem muito a ver com isso.

IHU On-Line – Um dos teólogos que vem propondo debate sobre as religiões e a paz é Hans Küng, a partir do seu Projeto de Ética Mundial, para quem “não há paz entre as nações sem paz entre as religiões” e “não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões”. Como o senhor analisa as contribuições de Hans Küng nesse sentido?

José María Vigil – Entendo que essa frase é de Gandhi, sendo Küng quem a tornou conhecida, sim. Mas acho que, a partir dessa perspectiva sobre a qual estamos falando, ela fica curta em todo caso. Deveria ser completada assim: “e não haverá diálogo entre as religiões, sem uma visão pluralista”, ou seja sem TdPR. De fato, Küng coloca esse debate, como você bem diz, “a partir da ética mundial”, de uma ética que acharíamos comum a toda a humanidade, a todas as religiões… mas não a partir de uma visão teológica comum (não digo de uma teologia única).

Com a ética mundial, Küng não entra no campo propriamente teológico, não entra na TdPR, e de fato penso que ele não entrou ainda em uma visão “pluralista” (estou dizendo isso como termo técnico, equivalente a “superadora do inclusivismo”). O professor confessa-se inclusivista, até onde eu conheço – gostaria de ser corrigido se estiver errado. Têm teólogos, como Paul Knitter [2], que dizem que Küng ainda não cruzou o Rubicão…

Bom, não quero dizer que o Projeto de Ética Mundial não seja muito bom, importantíssimo. Digo que ele não chega a entrar no nível teológico mesmo. E não tem por que fazê-lo. É um projeto no nível da ética. É legítimo. E é legítimo também tentar ir além da ética, entrando no nível propriamente teológico. Como teólogos, nós estamos nisso, mesmo admirando e agradecendo o Projeto de Ética Mundial. Tudo o que contribui para o diálogo e a convivência entre as religiões é bom, necessário e urgente mesmo.

IHU On-Line


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