quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Jon Sobrino denuncia que o poder eclesiástico ''traiu Jesus''

Jesus, o fundador cristão, levantou-se contra a casta sacerdotal de seu tempo. Os teólogos da Associação João XXIII o fazem agora contra o poder episcopal. Confirmaram-no ontem com um manifesto no qual lançam “um desafio” aos fiéis no nazareno crucificado junto a Jerusalém há mais de dois mil anos. “Acabou-se o tempo dos silêncios.

A reportagem é de Juan G. Bedoya, publicada no jornal El País, 13-09-2010. A tradução é de Benno Dischinger.

São tempos de testemunho, de compromisso, de avivar a fé em Jesus, de seguir suas pegadas, fazer nossas as demandas de serviço e solidariedade com os mais deprimidos, e ajudar a implantar o reino de Deus entre nós como reino de justiça, de paz, de liberdade, de igualdade e fraternal solidariedade”, proclama a mensagem final do trigésimo congresso da organização.

Pouco antes, o jesuíta Jon Sobrino dissera em sua palestra de fechamento que “a Igreja traiu Jesus”. “Esta igreja não é a que Jesus quis. Esta é a idéia que tenho agora, velho e meio cego, na espera da morte”, disse ele aos congressistas. Mais tarde, na coleta celebrada durante a eucaristia, foram arrecadados 17.000 euros que se destinarão a projetos de solidariedade com a África, a América Latina e a Ásia.

O paraninfo do sindicato Comissiones Obreras em Madri sentiu-se pequeno para acolher os pensadores cristãos convocados pela Associação João XXIII para refletir sobre Jesus de Nazaré. Isso se esperava. Ninguém como o fundador cristão concita na Igreja católica tanto entusiasmo e tanta polêmica, desde os que sublinham sua face humana, radical, corajosa, combativa contra os poderosos, aos que o preferem como um ser supremo e divinamente pacificador. Grande parte das sanções da Congregação para a Doutrina da Fé, que é como se chama agora o velho e sinistro Santo Ofício da Inquisição, tem origem em escritos sobre o famoso nazareno crucificado.

Para manter-se saudável, a mensagem do congresso inicia com uma proclamação do Concílio de Calcedônia, do ano de 451. “Reafirmamo-nos na doutrina de que Jesus Cristo é perfeito na divindade e na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, pelo qual suas duas naturezas, a divina e a humana, estão unidas sem confusão”.

Os teólogos fundem, assim, o Jesus histórico e o Cristo da fé, porém não renunciam aos seus princípios, que tanto incomodam os bispos. “À pergunta de Jesus aos seus discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?”“, fiéis católicos, ortodoxos e protestantes, numa manifestação de ecumenismo ativo, expressaram a dimensão da fé num Jesus libertador, companheiro de viagem, plenamente atual para um mundo que sofre a violência, a discriminação, a intolerância, os fanatismos, os abusos com as classes mais desfavorecidas, a fome...”, acrescentam.

Tampouco se esquece o manifesto direito do discreto papel das mulheres na Igreja romana. “Jesus abre uma porta de esperança e produz segurança, respeito e dignidade à mulher em meio a uma sociedade que com frequência a rechaça, e na qual os órgãos de decisão e poder procuram convertê-la em instrumento de prazer ou serviço, reduzindo-a a um plano de subordinação com respeito ao varão; considera-se totalmente contrário à prática da lapidação ou à negativa à ordenação de mulheres, considerada maneirosamente pela hierarquia como um grave delito, ao mesmo nível que a pederastia”.

Jesus manteve uma relação de amizade com as mulheres, “na qual fica patente a cumplicidade e a sintonia”, acrescenta a mensagem. A teóloga Mariola López Villanueva, da congregação dos Sagrados Corações, havia colocado antes que, quem sabe, em vez de perguntar-se o que Jesus ensinava às mulheres, seria melhor perguntar-se o que Jesus aprendeu das mulheres.

O congresso também aprovou uma mensagem de solidariedade com o teólogo José Arregui, forçado a abandonar a ordem franciscana pelo bispo de San Sebastián, José Ignácio Munilla. Antes, os congressistas haviam sublinhado “a atitude dialogante, acolhedora e respeitosa de Jesus ante os dissidentes”. Sobre o castigo a Arregi, afirma-se que o já ex-franciscano “aceitou com humildade o silêncio imposto pela autoridade eclesiástica, porém se rebelou frente à humilhação de que foi objeto ao ser acusado pelo bispo de ser ‘água suja’”. “É anti-evangélico o comportamento não misericordioso do poder eclesiástico contra fiéis que são sinceros testemunhos de Jesus com sua vida e seus ensinamentos”, conclui o congresso.

A resistência de um testemunho de mártires

Jon Sobrino, um dos grandes da Teologia da Libertação, comoveu ontem o coração dos mais de mil assistentes ao encerramento do congresso de pensadores cristãos, celebrado neste fim de semana no paraninfado de Comissões Operárias, em Madri. Nascido em Barcelona, em 1938, no seio de uma família basca, o famoso teólogo jesuíta passara grande parte da noite anterior num hospital e pronunciou seu discurso com voz alquebrada. Numa de suas mãos era visível a seringa que leva a suas veias o soro que o ajuda a viver.

No ponto de mira, a algumas décadas, dos inquisidores romanos por seus escritos sobre um Jesus demasiado humano, Sobrino é, ademais, um testemunho de mártires, um sobrevivente por milagre. Também a ele buscavam os esquadrões paramilitares salvadorenhos que, instigados por extremistas cristãos, entraram a tiros aos 16 de novembro de 1989 na residência dos jesuítas onde ele vivia com outros sete companheiros. Morreram todos: Ignácio Ellacuría, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, Ignacio Martín Baró, Amando López e Joaquín López, e também a mulher, Elba Ramos, incumbida da casa, e sua filha menor de idade, Celina. Ele se salvou porque naquele dia estava na Tailândia dando uma conferência.

Estreito colaborador do arcebispo de San Salvador, Oscar Romero, também assassinado em 1980, Jon Sobrino se tornou jesuíta aos 18 anos e viajou a El Salvador em 1957. Mais tarde cursou estudos de engenharia na universidade jesuíta de São Luiz, nos Estados Unidos, e de teologia em Frankfurt do Meno, na Alemanha.

A Congregação para a Doutrina da Fé (o velho Santo Ofício da Inquisição) molestou-o por várias vezes, até concluir em 2006, numa polêmica Notificação aprovada pelo papa Bento XVI, que em algumas de suas obras Sobrino “sublinha em demasia a humanidade de Cristo, ocultando sua divindade”.

Fonte: IHU

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