Conheci São Félix do Xingu em 1976. Fiquei hospedado numa pensão na sede municipal, que não tinha hotel. Dividia o quarto com três pessoas. Todas usavam redes. Um dos homens, sem se mexer, cuspia para o alto durante a noite. Eu acordava enojado pelo barulho. Mas que jeito? Não havia para onde ir na cidade. Melhorou quando fizemos uma longa excursão de “voadeira” pelo rio Fresco, a partir do igarapé Carapanã até suas nascentes, na divisa do Pará com Mato Grosso. Foi uma das minhas melhores viagens. O lugar era pouco menos do que um paraíso.
Voltei a Belém ainda mais convicto da minha posição, contrária à continuação da PA-279, que ligaria Xinguara a São Félix. Ela levaria o caos do Araguaia ao Xingu, impedindo uma forma mais inteligente de uso da terra. Graças ao debate que se suscitou, as obras ficaram paradas por algum tempo. Mas logo as máquinas voltaram à ativa e a estrada foi rasgada. A irracionalidade, que tanto mal causou ao Araguaia/Tocantins, fez pousada no Xingu. Sua principal atividade econômica, a pecuária, era impensável três décadas antes. Parece que andamos para trás.
No auge do verão deste ano, em agosto, 30% dos quase 65 mil focos de calor registrados pelo satélite do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), estavam localizados em São Félix. Quase 16 mil hectares de floresta densa foram postos abaixo e em seu lugar plantado capim para os bois pastarem – os animais irracionais e seus donos, a eles equivalentes. Só um ser irracional pode ainda achar que trocar floresta por pastagens é lucrativo ou mesmo natural.
As imagens do satélite revelaram que de agosto de 2009 a agosto de 2010 foram destruídos 16 mil hectares de florestas primárias em São Félix do Xingu, grande parte delas substituídas por pastagens. Em 15 dias, entre 21 de outubro e 5 de novembro, técnicos do Ibama constataram que 1,9 mil hectares de florestas nativas foram derrubados com a mesma finalidade. Os transgressores foram multados em 12,3 milhões de reais.
Numa outra área, de 590 hectares, o crime ambiental caracterizado foi a queima de lavouras e pastagens para a realização de novos plantios. Quase um quarto dos fazendeiros estabelecidos na região toca fogo na mata que sobrevive ao desmatamento ou nas roças e pastos degradados. A multa para esses casos foi de R$ 66 milhões.
Observa-se que a multa para a derrubada da floresta original foi de R$ 6,5 mil por cada hectare desmatado. Para as lavouras ou pastagens queimadas, a sanção foi de R$ 1,13 milhão. A razão, à vista do “modelo” (nada modelar) de ocupação da Amazônia, é evidente: pastos e lavouras são benfeitorias, com maior valor agregado. Já a floresta, gerada através de processo natural, não tem incorporação de valor, que só é conferido pelo homem.
Por isso, a punição a quem a destrói é mais branda (admitindo-se que as multas venham um dia a ser pagas). Inversão total de valores, é claro, mas de acordo com a irracionalidade que preside os atos humanos na última grande fronteira da Terra. Apesar de todas as campanhas de conscientização e das medidas de repressão e punição, ainda parece muito distante de ser alcançado um objetivo primário, que instauraria a civilização humana na Amazônia: a abolição do fogo como ferramenta para o trato da terra. Esse conhecimento, universalizado no meio técnico, não consegue passar dos gabinetes e laboratórios para as práticas usuais.
Lúcio Flávio Pinto
Delenda Amazônia.
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