Aos 27 anos, em 1974, veio para o Brasil. Em Faxinal (PR), aprendeu português e conheceu o sofrimento de famílias de agricultores que haviam perdido suas terras por força dos juros bancários.
Ao cursar o mestrado de Pastoral, em 1977, na PUC do Rio, entrou em contato com a Teologia da Libertação. A atuação na favela de Chapéu Mangueira, no Leme, reforçou nele a opção pelos pobres.
Eleito, em 1980, prior do convento dos dominicanos do bairro das Perdizes, na capital paulista, tornou-se assistente da Renovação Cristã do Brasil, movimento da Ação Católica.
Fundador do Grupo Solidário São Domingos, estreitou os vínculos entre o Brasil e os companheiros de Nelson Mandela na África do Sul. Em 1985, publicou, pelas Paulinas, o livro Cartas da África do Sul, fazendo ecoar as vozes dos combatentes contra o apartheid, em especial a de Steve Biko, martirizado pelos brancos racistas, e a do reverendo Michael Lapsley, da Igreja anglicana, que teve os braços arrancados e um olho perfurado ao abrir uma carta-bomba remetida por terroristas favoráveis ao apartheid.
Vice-provincial dos dominicanos do Brasil a partir de 1982, João Xerri apoiou os frades que, no Pará, defendem os sem-terra, como frei Henri des Roziers, advogado que, ano passado, recebeu do presidente FHC uma comenda por sua luta em prol dos direitos humanos.
Como vigário da paróquia de São Domingos, nas Perdizes, frei João democratizou as estruturas eclesiásticas, convocando os fiéis para elegerem o conselho paroquial. Criou o Bazar da Amizade, que, ainda hoje, atende ao povo da rua dos bairros Pacaembu/Perdizes, e o grupo Perdizes Pró-Nordeste, solidário às vitimas da seca naquela região.
Nomeado, em 1986, promotor de Justiça e Paz dos dominicanos da América Latina e do Caribe, frei João aproximou os movimentos sociais do Brasil e da América Central. Desde 1993, passou a editar a versão brasileira da Agenda Latino-Americana, lançada a cada ano em cerimônia no Parlatino, em S. Paulo. Trabalhou intensamente pelo fim da ditadura no Haiti, logrando, em 1995, a publicação da obra “Pense no Haiti, reze pelo Haiti” (Musa), escrita pelo jornalista Guilherme Salgado Rocha.
Foi também nos anos 90 que ele criou o movimento Clamor por Timor. Lembro-me de um repórter da Veja afirmando a frei João, em nosso convento, que era inútil sua luta para tornar o Timor conhecido no Brasil. Ninguém aqui jamais se interessaria por aquela ilha tão distante...
Frei João organizou, em 1997, com Sílvio Sant´Anna, o livro “Timor Leste, este país quer ser livre” (Martin Claret), e trouxe ao Brasil o ministro timorense Ramos-Horta, prêmio Nobel da Paz. Após visitar aquele país em fevereiro de 2000, em maio do mesmo ano frei João recebeu, em S. Paulo, Xanana Gusmão, principal figura da libertação timorense.
Ao visitar Chiapas, em 1998, João Xerri tornou-se um dos principais motivadores da solidariedade internacional aos indígenas mexicanos. Graças a este maltês naturalizado brasileiro, o Brasil ficou mais perto da África do Sul, do Haiti, do Timor Leste e dos povos indígenas do sul do México.
Frei João Xerri residiu em Roma, mas passava o ano percorrendo o nosso continente, pois foi escolhido pelo superior geral dos dominicanos para ser o seu representante junto aos frades da América Latina e do Caribe.Terminou o0 mandato em fevereiro de 2010.
Fonte: Frei Betto
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UMA ENTREVISTA HISTÓRICA
Por Mario Americo de Moura Filho
A história é o registro de um acontecimento. Ele pode ser feito pela ótica do vencedor; pode ser escrito pelo vencido; pode basear-se em documentos, em iconografias e em outros inúmeros registros que servem para narrar um determinado fato, ocorrido num determinado momento.
Mas há um registro que apanha certos pormenores, que conta a história por alguém que esteve no olho do furacão, que presenciou ou participou dos fatos, e cuja proximidade faz da sua narrativa algo intimamente ligado aos acontecimentos.
É o depoimento através da entrevista, cuja importância será tanto maior quanto mais identificar-se com a história, revelando os caminhos muitas vezes obscuros ou ausentes dos documentos que pretendem esgotar o fato.
Na entrevista sempre há uma revelação nova, um dado novo, que complementam outros anteriormente registrados em documentos e livros. A importância da entrevista reside no tom intimista do interrogado, assim como na pertinência das interrogações, ao levantar questões, propondo uma abordagem a partir de quem presenciou o acontecimento. Assim a entrevista com o frei João Xerri.
Sua inteligência e sensibilidade, seus juízos, desvelam o olhar despido de partidarismos. Um homem com os olhos abertos. O dominicano participou das lutas anticolonialistas apoiando movimentos populares em vários países do mundo: África do Sul, Timor Leste, Haiti, entre outros.
Considera a questão da Palestina mais vergonhosa que o Holocausto, e uma das questões que envergonham o século XXI. Presenciou no Brasil e no Mundo, conflitos importantes do século XX. Andou pelas favelas do Soweto no período do Apartheid na África do Sul.
Assistiu a fogueira da destruição do Timor Leste, defendeu refugiados do Haiti, apoiou os índios de Chiapas, no México. Nos últimos anos da ditadura no Brasil, era o contato entre sindicatos do ABC e quatrocentonas paulistas, ligadas ao Grupo Solidário São Domingos, do qual foi o fundador.
Secretamente, seus membros traduziam os acordos feitos por sindicatos e montadoras na Europa, para que pudessem ser compreendidos e servissem de orientação aos operários brasileiros.
A militância do frei é inspirada pela “opção preferencial pelos pobres”, tema fundamental da Teologia da Libertação, movimento que surgiu na década de 70 dentro da Igreja (e ao qual ele aderiu) que pregava ações ‘ativistas’ para a transformação de uma sociedade mais igualitária, tendo sido o movimento que colaborou e participou da criação do PT.
Nasceu em 1947, na República de Malta, no Mediterrâneo, ainda uma colônia inglesa. Criado na cultura colonial tornou-se um adversário feroz do colonialismo, contrariando a inclinação paterna, que era contra a separação de Malta, da Inglaterra.
A ilha tornou-se independente em 1964, ocasião em que João Xerri ingressou no seminário dos dominicanos, orientado pela família, tradicional e católica, sendo ordenado em 1971. Sua atuação nos bastidores foi apoiar e dar guarida a perseguidos políticos e vitimas da violência de regimes autoritários, além de recursos para mobilizar campanhas, e outras atividades. Transcrevo abaixo os principais trechos de sua entrevista.
O senhor nasceu em Malta. Como chegou ao Brasil?
Vim em 1974. Aprendi português em Faxinal (no Paraná), onde trabalhei numa paróquia. Vim na onda do papa João XXIII, na euforia dos anos 60, quando acreditávamos que a pobreza podia ser eliminada do mundo. Era o fim do colonialismo, a emancipação da mulher e da classe operária. Tudo era possível. Muitos religiosos e religiosas vinham para a América Latina. Só que houve o contrafluxo - as ditaduras. E, nessa guerra, os pobres perderam. Estamos vivendo o pós-guerra dos anos 70, quando morreu muita gente na América Latina.
Como foi sua aproximação com a Teologia da Libertação?
Em 1978, fui fazer pós-graduação na PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro. Comecei a freqüentar o morro do Chapéu Mangueira, no Leme, e a Pastoral da Terra (depois Pastoral das Favelas). Foi quando encontrei um grande mestre, o Bola, ou Aguinaldo Bezerra dos Santos (líder comunitário). Quando eu dizia entusiasmado, "nós, os favelados", ele me corrigia: "Não João, você nunca será um favelado, você é um companheiro." Bola me deu as raízes da Teologia da Libertação, a experiência concreta. Foi meu pai e meu amigo.
E com o movimento sindical?
Em São Paulo, vivi várias situações, principalmente no Convento dos Dominicanos (de onde foi eleito pároco, em 1980), no bairro de Perdizes. Também entram em cena a Lília (Azevedo, tradutora e militante popular, sua amiga e parceira) e o Movimento da Renovação Cristã (antiga Ação Católica). O encontro com o sindicalismo aconteceu através de (frei) Betto e do frei Aírton Pereira, já morto, ligados à Pastoral Operária. Meu primeiro contato foi em 1980, quando fui com o Betto visitar Marisa (a primeira-dama Marisa Letícia), na casa dela, e Lula, que eu não conhecia, estava preso.
E qual foi sua exata participação?
Formou-se, na época, um grupo de senhoras - não vou dizer os nomes, porque algumas não iam querer - que faziam traduções para a oposição sindical (o Grupo Solidário São Domingos). Existem confederações internacionais de sindicatos e, quando um sindicato faz um acordo na Alemanha, manda cópia para o Brasil. Mas aqui no sindicato ninguém lê alemão nem francês. Por isso, um grupo de senhoras fazia essas traduções, em segredo. É muito bonito: senhoras de classe média, que falavam francês, alemão, italiano, inglês, em casa, sem sair e sem os maridos saberem, podiam fazer uma tradução para apoiar o sindicato na negociação com a Peugeot, por exemplo. No sindicato, nunca se soube quem elas eram. Lá de dentro, só uma pessoa me pedia para traduzir os acordos.
Como chegou à Comissão Pastoral da Terra, no Pará, na mesma época?
Havia dominicanos lá. O grande conflito era pela terra. E o maior conflito a que assisti foi em Xambioá, na região de Conceição do Araguaia, quando tentaram expulsar os padres franceses Aristides Camio e François Gouriou (presos de 1981 a 1983, depois expulsos do país, acusados de incitar invasões). O Exército tomou a cidade e colocou um capelão militar na paróquia. Então a diocese me mandou, porque aquilo era uma afronta. Fiquei uns dois meses. O capelão militar na paróquia e eu em uma outra capela, apavoradíssimo. Nessa época, a Lília publicou uma coletânea de cartas do padre Aristides, com o título muito significativo: "O Importante é o Povo." É isto a nossa história: o importante é que eles possam ser cidadãos desta República, que o Estado brasileiro funcione para todos.
Como aconteceu seu envolvimento com a ação internacional?
Em 1983, a Lília propôs uma viagem. "Para tu modificares o modo de olhar", me disse. Fomos ao altiplano boliviano, La Paz, Cuzco, Oruro, lago Titicaca e Lima, onde acontecia um grande curso anual da Teologia da Libertação e o Conselho Latino-Americano da Renovação Cristã. Foi muito pedagógico, para alguém como eu, que nasci em Malta - então colônia inglesa -, tenho cara de árabe, pensei que era sueco. Ver as línguas indígenas faladas e as construções maravilhosas foi incrível. Rompi com muitas das minhas visões européias, preconceituosas. Em Lima, conheci um sul-africano, leigo, Mike Deeb, da Juventude Operária Católica, que tinha sido enviado à América Latina para articular apoio à luta contra o apartheid. Era 1983, eu era pároco em Perdizes. Por meio de uma parceria, na Inglaterra, com o Catholic Institute for International relations (o CIIR), passamos a atuar com um programa de intercâmbio teológico e ajudando lideranças a saírem da África do Sul.
O senhor conheceu o norte-americano que contrabandeou para fora da África do Sul os textos de Steve Biko (ativista sul-africano, morto pela política em 1977)?^
Conheci. Era David Mesenbring, anglicano. Outro anglicano, Aelred Stubbs, um santo homem, recolheu os textos e os entregou a esse jovem, que saiu da África do Sul e morreu na Inglaterra. As ditaduras pensam que sabem tudo, mas não sabem. Uma vez estávamos, eu e Lília, na sede da Conferência das Igrejas Sul-Africanas, com vários slides sobre o Brasil. De repente, entra a polícia, por acaso, para procurar outra coisa. Nossos amigos pensaram que seríamos deportados. Mas Lília era branca, tinha um porte não popular, falava um inglês impecável. Ela falou com o comandante, eu fiquei calado. O sujeito perguntou ao chefe: "Temos aqui uma senhora branca, parece que está visitando a Conferência Episcopal, que fazemos com ela?" O outro respondeu: "Manda ela sair imediatamente". Ela guardou tudo na bolsa,e fomos embora.
O senhor assistiu a muitas cenas de discriminação racial?
Sim, muitas. Havia, na África do Sul, a Lei de Imoralidade: nenhum branco podia dormir na casa de um negro e vice-versa. Uma vez, estava em Soweto com um amigo, James Guyse, na zona negra, uma favela enorme, onde não podiam dormir brancos. Veio a polícia, uma batida. Fui acordado pelos amigos e levado embora escondido pela favela. Nessa época, conheci Michael Lapsley (anglicano que perdeu as mãos e um olho com uma revista-bomba). Nelson Mandela (o mais importante líder da luta contra o apartheid, preso de 1962 a 1990 e eleito presidente da África do Sul de 1994 a 1999) estava na prisão.
Como surgiu o Grupo Solidário São Domingos?
Inicialmente, éramos a Lília e eu; depois, outros entraram. Era aqui em Perdizes, neste apartamento (de Lília Azevedo, em São Paulo, onde foi feita a entrevista). Era chamado Grupo de Tradução São Domingos, porque fazia aquelas traduções. Com a ação internacional, Nora Pecci (uma das primeiras apoiadoras) escolheu o nome São Domingos para reconhecer que já havia frades e leigos, nos anos 60, na Paróquia São Domingos, de Perdizes, que apanharam muito; e chamou de Grupo Solidário, porque a pauta era atender os pedidos de ajuda.
O grupo teve várias frentes, como Timor e Haiti. Como surgiram essas articulações?
De acordo com o que nos pediam. O CIIR financiou a vinda ao Basil de um timorense, Estevão Cabral, para pedir ajuda. Assim surgiu o Clamor por Timor, movimento pelo direito do povo de decidir sobre sua integração à Indonésia. Eu fui ao Timor Leste depois do plebiscito (que aprovou a independência, em 1999). Estava tudo queimando, dava pra sentir o cheiro. Queimaram dois terços do país. Quando chegamos, já tinham passado duas semanas, ainda havia fumaça. A Indonésia foi obrigada a aceitar o resultado, então abandonou, deixou tudo entregue a bandidos.
Foi ao Haiti? Por que as condições de vida lá não melhoram?
Fui várias vezes. Em 1986, fui nomeado, pelos dominicanos, Promotor de Justiça e Paz para América Latina e Caribe. O Haiti é o pais mais pobre do mundo. A primeira lembrança que tenho é a do lixo. Por que o Haiti é assim? Um pouco porque foi a primeira colônia de negros a se tornar independente - na verdade, foi a primeira colônia a ficar independente e que precisou indenizar o colonizador. E sempre escutei que o Haiti é um depósito de lixo, inclusive atômico.
O senhor esteve em Chiapas, no México, outro lugar muito pobre.
Sim, é a região de Bartolomeu de Las Casas, famoso dominicano. Fui porque, na Ordem, havia gente a favor e contra a ação do então bispo de Chiapas, dom Samuel Ruiz (que defendeu o levante indígena, em 1998). Eu era a favor, fui dar apoio. Até a chegada de dom Samuel, o índio não podia andar na calçada. O sacerdote canadense que traduziu a Bíblia para o tzotzil foi expulso do país, porque os branco não queriam a Bíblia na língua do povo. Hoje, esse movimento de base na Igreja, foi cortado. O bispo atual está controladíssimo pelo Vaticano.
Quais os seus planos atuais?
Estou em transição. Muitos desses projetos eram com a Lília (morta em junho deste ano - 2008). Não era só uma amiga, era uma parceira, e desfazer parcerias é complicadíssimo. Também terminei o mandato em Roma (o governo geral da Ordem dos Dominicanos), em fevereiro, e estou em fase de me reinserir. Quero recuperar as ligações com minha terra, minha família. Vou dividir o tempo entre Malta e Brasil.
Um país, uma causa urgente, hoje?
Palestina. É muito pior que o apartheid da África do Sul. Porque, na Palestina, o espaço é menor e você se bate com o apartheid as 24 horas do dia. Há duas portas para entrar em Belém: uma para os turistas, outra para os palestinos, que (Israel) fecha quando quer. Há estradas separadas, que só o colono judeu pode usar. Na África do Sul, não tinha isso. Tudo de sagrado nas leis internacionais foi quebrado. É uma vergonha pior do que o Holocausto. Governos não sabiam dele. Na Palestina, nenhum governo, nenhum país pode dizer que não sabe. E a tragédia é que os palestinos pagam pelo que não fizeram. Porque não existe um país europeu que não tenha roubado os judeus, na última Grande Guerra: Alemanha, Suiça, Vaticano, Itália, Inglaterra, Estados Unidos. Menos os Palestinos.
Fonte: Café História
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