Uma das contribuições mais originais das CEBs reside na espiritualidade. Com toda a certeza podemos dizer que a alma secreta e o motor que animam a vida das comunidades residem precisamente na espiritualidade. Mais ainda: As CEBs nos estão ajudando a recuperar o sentido bíblico e mais tradicional de espiritualidade. Biblicamente, espiritualidade significa a vida segundo o Espírito. Ela se opõe à vida segundo a carne. Paulo diz claramente: "a tendência da carne é a morte, enquanto a tendência do espírito é a vida e a paz" (Rm 8,6).
Espiritualidade é toda a atividade humana, é o projeto humano orientado para a reprodução, promoção e defesa da vida; eis o que significa andar segundo o Espírito. Andar segundo a carne é organizar a vida ao redor do egoísmo, num projeto humano centrado apenas em si mesmo, insensível à vida e às tribulações dos outros. Aos gálatas, Paulo mostra concretamente o que significa andar segundo a carne e andar segundo o Espírito (6,13-26).
Andar segundo o Espírito produz gestos e atitudes que expandem o sistema da vida; andar segundo a carne implica degradar a vida de si próprio e oprimir a vida dos outros. Nessa Perspectiva, a verdadeira oposição, na espiritualidade cristã, não é entre o corpo e a alma, mas entre a vida e a morte. O Espírito é sempre Espírito de vida e de ressurreição (Rm 8,11.13). Sempre que lutamos pela vida digna e nos sacrificamos para que todos tenham vida, como fez Jesus, estamos sendo instrumentos do Espírito e vivemos segundo o Espírito (conferir Rm 8,4).
Essa compreensão da espiritualidade surgiu nas CEBs e, em geral, na Igreja latino-americana, que se comprometeu com as maiorias oprimidas, a partir de duas experiências que se conjugaram: a experiência da iniquidade do sistema capitalista que ameaça o povo de morte e a leitura da Bíblia em comunidade.
A partir dos anos 1950 (com o processo acelerado de industrialização com a consequente internacionalização das economias latino-americanas e a acumulação de riqueza em poucas mãos) cresceu a consciência, praticamente em todos os países de nosso continente, do nível de espoliação e miséria a que a ordem capitalista estava submetendo o povo. Falta de trabalho, de alimentos, de saúde, de moradia, de educação e de segurança começaram a crescer de forma assustadora e como nunca antes em nossa história. Pari passu se implantaram ditaduras militares com aparelhos repressivos e terror de Estado, em vários países latino-americanos; tudo isso para garantir os ganhos do capital e frear os ímpetos reivindicatórios das maiorias empobrecidas. Via-se claramente que a vida e a morte do povo estavam ligadas à manutenção ou à derrubada desta ordem iníqua.
A Igreja-sociedade (quer dizer, a Igreja hierárquica) historicamente articulada com os interesses da ordem colonial e capitalista deu-se conta, de forma palpável, que tal situação era profundamente antievangélica.
Ela não poderia mais compactuar com essa ordem. A Igreja-hierárquica, animada pelos últimos papas, sensíveis ao grito dos oprimidos, assumiu sua função profética de denúncia dessa antiordem e de anúncio de um projeto de vida e de participação para o povo. Foi a partir de sua consciência evangélica, e não por motivos políticos, que a Igreja hierárquica se deu conta da contradição à sua mensagem original e tradicional de vida, de dignidade, de respeito dos direitos humanos - particularmente, dos direitos dos pobres - e começou a se afastar dos poderosos e a se aproximar das vítimas de nosso desenvolvimento profundamente desigual e injusto.
Setores mais avançados da hierarquia (como Dom Helder Câmara, do Brasil; Dom Larrain, do Chila; Dom Proaño, do Equador, entre outros) proclamavam a necessidade de superação da ordem capitalista por uma ordem democrática, ligada à participação do povo. Nesse contexto é que se começou a falar sobre processo de libertação a partir dos oprimidos, como imperativo da fé e exigência social da realidade.
Esses setores de Igreja - juntamente com teólogos e outros agentes de pastoral popular - começaram a desentranhar as dimensões libertadoras presentes na essência da fé cristã. Essa nova codificação da fé cristã ajudaria os pobres - que são em sua maioria religiosos - a se engajar, a partir de sua própria bagagem de fé, no processo de superação das opressões a que estavam crescentemente submetidos.
Esse compromisso com a mudança da sociedade a partir da fé libertadora ajudou a desenvolver toda uma espiritualidade de compromisso com os pobres e contra a sua pobreza-opressão; auxiliou na descoberta do Cristo sofredor nas coletividades marginalizadas, na releitura do Evangelho como mensagem de libertação integral e do Reino em sua dimensão histórica e escatológica, começando com a instauração da justiça e da paz e culminando com a comunhão íntima com Deus. Essa foi uma vertente, geradora de espiritualidade.
A segunda vertente consiste na reapropriação das comunidades eclesiais da leitura da Bíblia a partir de sua própria situação de miséria. Toda a Bíblia é assumida como Palavra de Deus dirigida a Seu povo. Mas quando confrontada com a situação de morte que as comunidades eclesiais viviam e ainda vivem, emergiram ênfases e acentos que falavam diretamente para o hoje da história. Assim a temática do Êxodo, as denúncias dos profetas, o código da aliança, a prática libertária de Jesus, o significado de seus sinais, a morte como consequência de seu compromisso com o projeto do Pai e com os pobres que sempre defendeu, a ressurreição como confirmação do acerto da causa de Jesus e vitória da vida, agora plenamente realizada. E se sublinharam outros temas que mais diretamente se referiam à libertação e à condenação a todo tipo de dominação e espoliação dos outros, particularmente dos pobres.
Curiosamente, os membros das CEBs, quando lêem a Bíblia, sentem, como por uma conaturalidade de mentalidade e de fé, que eles são os continuadores do Povo de Deus bíblico. O povo de ontem e o povo de hoje padecem as mesmas mazelas, conhecem os mesmos mecanismos de subjugação, alimentam as mesmas esperanças, crêem no mesmo Deus que escuta o grito do oprimido e que decide libertá-lo.
Essa percepção é teologicamente correta, pois o destinatário da Palavra de Deus é sempre o povo vivo em cada geração, o e não apenas o primeiro a quem os hagiógrafos destinaram seus escritos. Como escrevemos acima, o método de leitura é aquele consagrado pela mais antiga tradição dos padres da Igreja: lê-se a inteira Escritura à luz da vida, e se submete a inteira vida à luz da Escritura. O texto da vida ajuda a entender o texto da Escritura; o texto da Escritura auxilia a entender o texto da vida, porque, antes de ser texto escrito, a Escritura foi experiência de fé e de encontro com o Deus que se revela.
A leitura comunitária da Bíblia feita nos milhares de círculos bíblicos e no próprio seio das CEB's fez com que o povo tomasse consciência de sua pobreza; descobriu também que Deus é contra essa pobreza que mata antes do tempo e oprime todo um povo; identificou igualmente o projeto de Deus na história, que é o povo vivendo em justiça, em fraternidade e em comunhão de bens. O causador do empobrecimento possui hoje um nome: é a besta-fera da ordem capitalista que tem seus faraós, seus falsos profetas e seus ídolos. Deus quer um sistema no qual o povo tenha vida e essa vida seja produzida pelo trabalho de todos, bem como sejam satisfeitas as carências básicas das pessoas.
Nessa articulação Palavra-vida e vida-Palavra surgiu uma espiritualidade de compromisso com a transformação da sociedade. A motivação subjacente é religiosa, nasce da fé inserida na contradição e na opressão. O resultado somente poderia ser uma espiritualidade de libertação da vida e da luta para garantir e consolidar a vida de todos.
As duas vertentes - a crítica à ordem capitalista como iníqua para as grandes maiorias e a leitura da Bíblia a partir da opressão - se conjugaram e propiciaram um novo perfil de cristão e um novo modelo de Igreja, afastada de sua aliança histórica com os setores dominantese comprometida com os oprimidos.
A Igreja-comunidade é vista pelos pobres como sua aliada; melhor, é majoritariamente constituída de pobres e de todos os que optaram pelos pobres (sua causa e suas lutas). Surgiu uma nova evangelização de tipo libertador, como antes era de tipo acomodador à ordem vigente; viver o evangélico implica promover a vida, pois Deus é o Deus da vida e o projeto de Jesus consiste em produzir abundância de vida; concretamente essa afirmação religiosa se desdobra em crítica aos mecanismos de morte e aos empecilhos à vida, configurados na ordem capitalista. O sentido religioso e evangélico do povo, alimentado nas CEBs, naturalmente se opõe ao sistema que produz morte ou encurtamento da vida das maiorias.
O evangelho é político por ele mesmo, pois sua proposta critica o statu quo e demanda uma superação na linha de participação e da criação de condições de vida para todos. Essa espiritualidade está assimilada nos cristãos das CEBs e trouxe ao conjunto da Igreja uma notável renovação pastoral, teológica e espiritual.
Essa espiritualidade, nascida fundamentalmente da Bíblia, permitiu ao povo reassumir de forma criadora as devoções populares, como os atos penitenciais, as vias-sacras, os rosários, as procissões e os benditos. Os membros das CEBs retomam a tradição, filtram-na pelos critérios evangélicos, acrescentam-lhe novos conteúdos, mais ligados ao seguimento de Jesus, ao sentido ético de ser cristão e ao compromisso com a justiça a partir dos pobres.
Os cristãos apresentam alguns traços que convém enfatizar:
- Consideram-se militantes, quer dizer, o acento recai mais sobre o seguimento de Jesus, de Maria, dos apóstolos, dos comportamentos dos santos e santas do que sobre a mera devoção de suas virtudes e milagres. O militante cristão das CEB's se sabe portador do projeto do Reino no mundo e por sua prática coerente e comunitária se considera um operador da política de Deus na história (um significado militante do Reino).
- Consideram-se também companheiros de caminhada, quer dizer, a Igreja não é uma realidade totalmente acabada e feita de uma vez por todas, mas algo está sendo construído num processo comunitário, chamado sugestivamente de "caminhada eclesial". Os que andam pelo mesmo caminho são companheiros no seguimento de Jesus e companheiros também de outros que, mesmo não sendo cristãos, assumem a causa de Jesus ao quererem igualmente a transformação da sociedade numa sociedade de mais justiça e humanidade.
- Os cristãos das CEBs são comprometidos politicamente porque entendem a política como uma ferramenta de realização do Reino na sociedade e ao mesmo tempo como o campo onde devem ser resolvidos os problemas políticos: a opressão, a marginalização, a discriminação do negro, do indígena, da mulher e de outros estigmatizados.
- Os membros das CEBs são ecumênicos: além das diferenças doutrinárias com seu peso histórico, sentem que devem todos os cristãos unir-se na missão comum que é viver a dimensão libertadora do Evangelho em face dos pobres e injustiçados. Servindo a uma causa comum, muitas divergências se mostram irrelevantes e as convergências no essencial da fé cristã aparecem com mais nitidez.
Fonte: BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: A Reinvenção da Igreja. págs: 96-101
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