sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Quem é o outro?

Quem é o outro?



por José Carlos García Fajardo


No Ocidente existe uma tradição religiosa que proclama "amarás teu próximo como a ti mesmo" como expressão de sua espiritualidade. (Há textos hindus e budistas que a expressaram centenas de anos antes). Encontramos a síntese na parábola do Bom Samaritano como resposta ao fariseu que pretendia safar-se de toda responsabilidade para com aqueles que não fossem "os seus", aqueles com quem se relacionava.

Tanto na tradição judaica como no calvinismo, que vai dar origem ao capitalismo desumanizado, o conceito de povo, de família, de relação tem algo de contratual e de mútuo benefício: "dou-lhe isto para que me dê aquilo" ou "não lhe faço isto para que não faça a mim". Aí tem sua origem o individualismo mais feroz que vai se confundir com o modernismo surgido do Iluminismo, que se atreve a separar religião e cultura, reduzindo aquela a uma ideologia. Podem ser diferenciadas, mas não separadas, pois o religioso é uma dimensão do homem expressa ao longo dos séculos nas diferentes religiões institucionalizadas. Na Índia seria impossível fazê-lo, pois o religioso é um estilo de vida que impregna de sentido a nossa existência. A religião confere à cultura seu sentido último, enquanto que a cultura empresta à religião sua linguagem, para que possa se expressar num contexto cultural. Toda linguagem é determinada culturalmente e toda cultura é informada em última instância por uma visão última da realidade. Daí que nenhuma religião possa ter o monopólio do religioso, da dimensão transcendente do ser humano e de sua expressão por meio de rituais, cultos ou celebrações para aproximar o humano a sua dimensão mais plena. Por isso, é de néscios (ne scire) sustentar que possa existir uma só religião verdadeira, considerando falsas a todas as demais com as quais não souberam estabelecer um diálogo "intra-religioso", (que fecunda as culturas) e que vai além do inter-religioso que trata de colocar-se no lugar do outro, para considerar a realidade a partir de suas categorias e circunstâncias culturais. A sabedoria está em aceitar e respeitar as diversas tradições religiosas como fenômenos que expressam diferentes expressões de religiosidade. Esse é o sentido autêntico das diversas "moradas" às quais alude Jesus. E o profundo significado do silêncio como ambiente de sabedoria: "Não diziam palavra o anfitrião, o hóspede e o crisântemo", reza um velho haiku.



Não é admissível a pretensão de alguns seguidores do hinduísmo, do budismo, do judaísmo, do cristianismo ou do islamismo, para citar algumas mais conhecidas, de que a sua religião é superior às demais. Todas as religiões se baseiam num sentimento religioso humano primordial; não obstante, cada tradição religiosa tem fronteiras determinadas por seus limites geográficos e históricos. A pretensão de universalidade e o conceito de missão levaram ao desarraigo e a explorações desumanas e injustas. Da mesma maneira que os povos poderosos pretenderam "civilizar" (porque viviam em cidade civitas) aqueles que consideraram "selvagens" porque viviam em florestas, os missionários dessas tradições prepotentes saquearam outras culturas, tratando de pagãos e supersticiosos - quando não de ateus e de idólatras - aqueles que não pensavam como eles: destruíam seus símbolos qualificando-os de ídolos e os obrigaram a ajoelhar-se ante duas toras cruzadas, ante uma caixa de metal onde guardavam um pedaço de pão ou ante uma imagem de gesso. Renegavam seus cultos com fogo e resinas aromáticas, enquanto eles usavam incenso, velas e água. Outros os obrigavam a circuncidar o prepúcio ou a se prostrar em direção à Meca. O que foi o colonialismo senão um monoculturalismo cuja essência é acreditar que a partir de uma só cultura se pode abarcar a gama total da experiência humana?



O culto verdadeiro é praticado em "espírito e em verdade". Em espírito, não importa onde nem sob que forma, porque todo lugar é santo. Em verdade, a autenticidade, porque toda verdade se inscreve em uma relação interpessoal. A verdade é sempre concreta. Tudo está relacionado a tudo, de maneira que nossa responsabilidade é universal. Sem sincretismo nem relativismo algum.

"Amar o próximo como a si mesmo" não esgota a relação de alteridade, de beneficência ou de generosidade, mas sim contém uma relação de reciprocidade. Porque "o outro" nunca poderá ser objeto de nosso amor, já que sempre será sujeito que interpela. O objeto é meio ou instrumento para um fim, e o outro - quem quer que seja, onde esteja e nas circunstâncias que sejam - é sempre um fim em si mesmo.

O ser humano é pessoa (rede de relações, nó de encontros) e não mero indivíduo (mônada independente). O indivíduo não desaparece no nada, mas a pessoa se transforma na plenitude de descobrir o outro, o uno e o todo.

Ante o egoísmo da busca pelas virtudes, para não dizermos do suborno de investir-se num hipotético além, está a plena dimensão do "tive fome e me deste de comer...".

Não é recomendável se preocupar em fazer o bem, mas fazê-lo. Se se busca o mérito das ações, estas se prostituem. Daí que o justo não se preocupe em fazer coisas boas; "bom é o que faz o justo". Justo é o termo bíblico para sádhaka, aquele que se pôs no caminho descobrindo que caminho, verdade e vida são a mesma realidade.

Como saberia o uno que é uno se não fosse pelo duo? Como saberia eu quem sou, se não fosse por você? Logo, ante a pergunta farisaica do título, levanta-se a evidência que descobrem os sábios, as crianças e os limpos de coração: o outro, o próximo sou eu.

É preciso acender uma chama para quem quer que seja e onde esteja, sem esperar por nada em troca, pelo prazer de compartilhar. Porque a esperança não é do futuro, senão do invisível. E nessa doação descobre-se a plenitude do regalo como presente. Pois se sempre há mais prazer em dar do que receber, esta é uma matéria pendente: quando se aprende a receber, se enriquece ao doador o qual transborda, "se verte" e assim se estabelece a conversação (cum versare, verter-nos juntos") e a conversão ou metanóia, que não tem nada a ver com a idéia de penitência imposta por um certo cristianismo um tanto distante da mensagem e da conduta do jovem carpinteiro de Nazaré.

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