quarta-feira, 24 de novembro de 2010

No nosso ser há mulheres prostituídas

"De que me vale ser filho da santa /
Melhor seria ser filho da outra /
Outra realidade menos morta /
Tanta mentira, tanta força bruta..."
(Música Cálice, de Chico Buarque)


Alguém extasiado pela beleza e encanto de uma poesia de Adélia Prado, disse a Adélia Prado, que acabava de fazer uma palestra: "Adélia, você é a autora dessa poesia?". A poetisa de Divinópolis divinamente respondeu: "Não. Autora é a humanidade". Com isso Adélia queria dizer: A inspiração para essa poesia brotou em mim, mas poderia ter brotado em qualquer pessoa do presente ou do passado. Somos filhas e filhos não apenas de nossos pais e mães, mas de nossos avós, bisavós..., de todos os nossos ancestrais. Fazemos parte de uma única comunidade de vida. Somos elos vivos de uma grande teia da vida.

Com frei Betto, afirmamos: "Cada um de nós tem 15 bilhões de anos! Nosso corpo é tecido de células, que são feitas de moléculas, que se compõem de átomos, que foram fabricados no calor do Big Bang ou no único forno capaz de fundi-los e transmutá-los: o coração das estrelas. Somos todos feitos de matéria estelar. Somos o Universo que se olha com os nossos olhos. Daí a importância de que essa conaturalidade se estenda à solidariedade impelida por nossos gestos de compaixão e amor".

Prestemos atenção na linhagem de Jesus de Nazaré, o galileu que, por amor extremado testemunhou um jeito humanizador de viver e conviver. Mesmo condenado à pena de morte, por ter consolado pessoas aflitas e incomodado os acomodados, ressuscitou e vive em nós e no nosso meio.

Com saudade do grande biblista do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) Eliseu Lopes -que agora vive em plenitude-, partilho com vocês o que ele sabiamente nos ensinou sobre mulheres prostituídas na nossa ascendência. Com Eliseu recordamos: "Jesus tem linhagem. Não é qualquer um. Antes de tudo, sua árvore genealógica em que os nomes são estacas que se alinham ao longo de toda a história do povo da Bíblia, a começar por Abraão, o Pai Abraão. Para o povo da Bíblia, o notável é que as genealogias, no patriarcalismo dominante, só comportavam nomes masculinos, mas no Evangelho de Mateus, figuram cinco nomes de mulheres chamadas de prostitutas, que dignificam a ascendência de Jesus de Nazaré: Tamar, Raab, Rute, a mulher de Urias (Betsabeia) e Maria. São mulheres que ocupam um lugar importante na História do povo da Bíblia. São mulheres que se distinguiram pela coragem, pela fidelidade, pela resistência, pela criatividade e pela astúcia.

Tamar, nora de Judá, ficou viúva e seu cunhado Onan se recusou a cumprir a lei do "levirato", que dizia que o irmão do morto deveria assumir a viúva para dar-lhe descendência. Fiel à Lei, corajosa, criativa e astuciosa, Tamar disfarçou-se de prostituta para conseguir do sogro o seu direito, precavendo-se, com a exigência de um penhor, contra as inevitáveis conseqüências da gravidez (Gênesis 38).

Raab também era considerada prostituta. Acolhe na periferia da cidade de Jericó os Sem Terra espiões enviados por Josué, esconde-os para preservá-los do faro canino dos policiais, dá-lhes a fuga com as devidas instruções para escaparem ilesos e declara que o motivo de sua corajosa generosidade é sua fidelidade ao Deus de Israel. Na hora de partilhar a terra, a família de Raab ganhou um lote. Assim, a aliança dos pobres do campo com os pobres da cidade começou com uma mulher prostituída, Raab. (cf. Josué 2). A Bíblia faz questão de dizer que Jefté, grande juiz no meio do povo, era filho de uma prostituta (Juízes 11,1).

Rute é a heroína do romance com seu nome. Teve a coragem de deixar seu povo para acompanhar a sogra Noemi, um comovente testemunho de fidelidade à amiga. Teve a astúcia de conquistar as boas graças de Booz. Note-se que a história de Rute pertence à literatura de resistência à restauração implantada pelo sacerdote Esdras. Com Rute se privilegia uma estrangeira com a condição de bisavó de Davi (Rute 4,18-23).

A beleza de Betsabeia, mulher de Urias, enlouqueceu o rei Davi. Ela teve um papel saliente na sucessão de Davi e graças a ela é que o trono foi ocupado pelo seu filho Salomão. O simples fato de ser mãe de Salomão e a coragem com que enfrentou as intrigas da corte em um momento mais do que crítico, a consagram (I Reis 1).

Enfim Maria, a mais jovem, a mais fiel, a mais corajosa, a mais lutadora de todas. A única não estrangeira, provavelmente era da estirpe de Davi, pois seu noivado com José supõe laços de parentesco. A mais jovem, talvez ainda quase adolescente, precocemente madura e lúcida. Ficou grávida ainda solteira. Teve muita coragem para enfrentar a inevitável maledicência do povo da pequena cidade de Nazaré. Com o progresso da gestação que se tornou visível, José mergulhou na angústia e caiu em um dramático dilema: denunciá-la para que fosse punida com os rigores da Lei ou abandoná-la. Ia optar pela Segunda alternativa, quando um anjo do Deus da vida lhe apareceu em sonho e o tranqüilizou com a revelação do mistério. (Mt 1,18-25)." Jesus de Nazaré é descendente de Tamar, Raab, Rute, a mulher de Urias (Betsabeia) e Maria, mulheres consideradas impuras, mas muito humanas.

"A maior tristeza é a discriminação. Como você vai falar: sou prostituta.", desabafam muitas mulheres que batalham. Jesus e Maria também foram discriminados. Por isso também o Evangelho de Mateus fez questão de mostrar a presença de cinco mulheres na história de Jesus. Mesmo tachadas por muitos como prostitutas, o povo da Bíblia viu nelas coragem, criatividade, sensatez, audácia, liberdade, disposição para a luta, muita humanidade... Isso levou Jesus a asseverar: "As prostitutas precederão vocês no reino dos céus" (Mateus 21,37).

Enfim, como Tamar, Raab, Rute, a mulher de Urias (Betsabeia) e Maria há tantas mulheres que batalham, são amadas pelo Deus da vida e não podem ser discriminadas. Devem ser respeitadas na sua dignidade humana.

Frei Gilvander Moreira

Carmelita, mestre em Exegese Bíblica, professor de teologia Bíblica, assessor da CPT, CEBI, CEBs, SAB e Via Campesina

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